Ao
término da aula, foi o último a sair. Passou pela professora e jogou a régua
emprestada com toda a força sobre a mesa. "Chata!"
A
professora respirou fundo e tentou ser normal:
_
Esdras, quando alguém nos empresta alguma coisa, precisamos, ao entregar, de
agradecer, certo?
.
Ele
ergueu e abaixou os ombros. Saiu da sala assim. Foi. Ganhou o espaço do
pátio. Caminhou firme, passos fortes. A professora foi atrás,
observando o jeitão malcriado de erguer e abaixar os ombros várias
vezes.
E
foi assim enquanto caminhava até a porta de saída, muitas vezes, ergueu e
abaixou os ombros.
Menino
danado. Que fazer com aquilo?
Em
silêncio, ela o seguiu. Menino danado mesmo. Agora ia à sua frente e nos
gestos demonstrava que não fazia caso.
Ela
sacudiu a cabeça; queria saber a melhor maneira de lidar com ele. Será
que fizera errado? Teria sido muito melhor ter entregue o “material”, apesar de
toda a grosseria. O menino jamais veria como um presente da professora, apenas
como a mais um direito a alguma coisa que a sociedade lhe dava. Não era justo
entregar o presente daquela forma. Não, não era! Ela comprara para fazer
um agrado, um carinho àquelas crianças tão carentes de bens materiais e afetos.
Mas não era uma coisa que ele deveria arrancar dela com tamanha grosseria.
Afinal que culpa ela tinha se professor é feito de carne e osso e nervos
também. Até entendia que era criança e queria o presente, mas não daquela
forma... Era um presente apenas.
Ainda
uma vez, ergueu e abaixou os ombros... . É assim que caminha a educação!
Ela riu do próprio pensamento ambíguo, caminhando lentamente atrás do
garoto.
Ele
à sua frente e ela confusa. Que poderia fazer para consertar a situação?
Ele era o tipo que fazia despertar sentimentos barrocos nela. Extremos
mesmo.
O
primeiro encontro já fora desastroso. Era uma turminha que precisava de
apoio. Mais que apoio, precisavam aprender de verdade para serem aprovados
naquele ano. Mas o Esdras era diferente dos demais. Inteligente. Lia e
compreendia os mais diversos textos. Era bom na escrita. Não fosse as
circunstâncias da sala de aula em seu período normal, não precisaria daquelas
aulas no turno inverso.
-
Esdras... Bonito nome!! Você sabe a história do seu nome?
-
Não, não sei, você é que é a professora é que deve saber!
Ooo
pergunta infeliz! Sabia pouco demais a respeito desse nome. E o pior, o menino
era danado. Danado mesmo. Melhor mudar o foco da questão.
-
Eu fui infeliz na pergunta. Gostaria de saber se a sua mãe te contou a respeito
do seu nome.
-
Não, não contou nada. Conta você. E nome la tem história por acaso?
Ficou
pior. Melhor ser sincera.
-
Tem sim. Certos nomes têm história... Bom, vou pesquisar, certo? Esdras é um
nome bíblico, mas sei pouco a respeito...
Foi
um olhar questionador e terno que a professora recebeu de modo totalmente
inesperado:
-
E aí me conta, professora. Agora eu também fiquei curioso.
Depois
disso, ele se tornara amável, simpático de verdade. Chegava sorrindo.
Cumprimentava. E o melhor, a professora gostava do modo como ele aprendia.
Garotinho inteligente. Menino danado. Era bom na leitura. O primeiro a
responder. As respostas coerentes.
Mas
agora ele caminhava à frente da professora e levantava e abaixava os ombros,
depois de usar a sua régua e intitulá-la "chata" . E ela sentia que
precisava ensinar algo mais a ele. Outra vez, riu dela mesma. Seria ela a
estranha? Como agir para também - de alguma forma - orientar as crianças a serem
melhores como pessoas. Não, definitivamente ela não sabia como. Mas, a maioria
das vezes, as ações falam mais alto em sala de aula, pensou.
Aquela
turminha apresentava alguns problemas bastante graves, sobretudo, em suas
linguagens. Mas o comportamento era
sobremaneira terrível. Eram totalmente inadequados. Gritavam. Falavam
palavrões. Mexiam nos pertences dos outros. Dos livros que recebiam para as
leituras, arrancavam páginas, realizavam desenhos e escreviam palavras
inadequadas em suas páginas. Não sabiam ouvir. Falavam quase todos ao
mesmo tempo. Durante as atividades, quando um precisava de algum objeto e não
tinha, solicitava “emprestado” quase sempre de modo inusitado. Algumas vezes,
ela via borracha, lápis, apontador, régua ou, até mesmo, caderno voando
pela sala.
Como
isso a irritava, resolveu conversar com a turma, a fim de que se comportassem
mais príncipes e menos ogros. Não teve sucesso e acabou combinando com eles de
que iria comprar alguns desses materiais para presenteá-los, já que não tinham
o material completo. Passou uma lista e fizeram as suas solicitações.
E
lá estava o menino cheio de querer. Era esperto, aprendia com facilidade e
queria bastante. Queria tudo.
No
dia da entrega dos presentes, não apareceu e depois demorou em reaparecer.
Assiduidade não era um compromisso dele.
Um
dia, antes de entrar na sala de aula, a professora ouviu um grito:
-
Você vai entregar o meu material hoje?
Entrou
e, antes mesmo de falar com as crianças, lá estava o Esdras.
-
E o meu material, professora, está surda agora?
-
Espera aí... Que material? – Procurou acalmar-se. Precisava disso.
Nossa!
Alguns sóis já eram passados após a entrega do presente à turma e ela tinha
ali, à sua frente, o menininho do comportamento, no mínimo, estranho. Que que
era aquilo? Ele trazia as mãos à cintura, o olhar frio e a voz em tom agudo,
mas ela era a professora.
-
Esdras, sente-se, por favor! - Ele queria o que acreditava de direito
imediatamente e antes de tudo. – Depois falo com você.
Havia
agressão na insistente voz aguda. Não era possível que aquele menino não tinha
a menor noção do que fazia. Será que tinha o direito àquele presente? Sim,
tinha. A promessa do presente se deu em outra circunstância. Ficou confusa.
Procurou firmeza até acertar a turma.
Naquele momento, eram muito felizes na leitura de um livro. Respirou fundo. Não
queria ficar brava, nem brigar com o garoto. Acertou a turma e fizeram o
círculo para a leitura.
Bom,
ela não trouxera o presente; não via o menino há algumas aulas. E depois que
fizera a distribuição do material – réguas, borrachas, lápis, apontadores
- para as crianças, separara alguns para as emergências que fatalmente se
dariam ali. Não poderia hesitar naquele momento. Não, decididamente não
era bom errar:
-
Esdras, você tem faltado às aulas. Eu já entreguei o material para as crianças.
E o seu não está aqui agora. Sente-se, por favor!
-
Então vai buscar o meu material agora que estou esperando!
Ela
queria gritar com aquela criatura, mas dizem que a paciência é o melhor
remédio. Olhou em seus olhos e tentou
ainda uma vez:
-
Esdras, sente-se. Depois eu vejo isso -. Apesar de tudo, ela conhecia bem
o tom da autoridade em sua voz.
Acomodou-se
contrafeito e irritado.
E
quando iam começar, eis que surge um novo problema: o menino resolvera
sentar-se no fundo da sala e debruçara sobre a carteira. Emburrou. Empacou de
vez.
Continuou
firme. “Deixem ele lá! Vamos ao texto!” Mas ele batia fortemente na
carteira.
Contou
até dez. Precisava manter a calma e arrumar uma saída melhor para não perder o
controle. No fundo, tudo o que ele queria era tumultuar a aula. E ela decidira se
fazer de calma.
Claro,
a vingança de ambas as partes!
A
única coisa que ocorreu à professora foi propor uma brincadeira às crianças:
-
Vamos fingir que estamos lendo, não olhamos para ele. Quem sabe, assim ele pára
.
Durou
um tempo o barulho.
E
uma irritação atacou um outro que verdadeiramente esmurrou sua carteira e
berrou com o Esdras . Melhor assim. Ela não entregara o seu estresse. Precisava
exercitar uma coisa chamada calma. Falou mais baixo do que de costume.
Teve sorte dessa vez. Foi possível ler e até “esqueceram” a confusão do Esdras
que permanecera emburrado lá no fundo da sala.
Que
fazer com aquilo? Agradar? Buscar o material e entregar como se nada tivesse
acontecido? Não. Não era justo um "prêmio" naquele momento.
Escolheu
fingir que não estava entendendo.
Na
hora de realizar as atividades, ele já tinha melhorado, mas caminhou nervosinho
até a mesa da professora:
-
Me dá a sua régua, porque eu não tenho régua, viu?
Ela
precisava ser persistente também na sua opção de modo de agir, mas tentou
encontrar alguma doçura na voz. Queria ensinar alguma coisa ao Esdras. Seria
possível a calma e o aprender?
-
Empresto, mas não se esqueça de me devolver ao final da aula, por favor.
Foi
o último a sair e agora caminhava à sua frente com aqueles modos. Não
falou mais nada. Tinha consciência da atitude inadequada durante todo o
tempo. Não olhou para a professora nenhuma vez.
Era
melhor deixá-lo ir, ou seria melhor chamá-lo. Situação confusa. Ele tinha sido
muito mal educado. Falar o quê? Poderia apenas levá-lo até a sala dos
professores e entregar o material e pronto. Mas e aqueles modos? E aquele mal
estar que ela sentia?
Ela
precisava respirar e digerir aquela coisa sufocada que entrava pela boca, soava
nos ouvidos, descia pelo nariz, explodia nos olhos, corria no sangue, fervia o
cérebro e fazia o coração bater diferente.
Queria
ir embora. Precisava pensar naquilo tudo. Melhor mesmo esquecer. Conversaria
com ele depois. Naquele momento, queria apenas ir embora. Que sutil
estresse consumia o seu corpo. Melhor seria tê-lo feito sair da sala. Manter-se
calma foi o seu erro. Às vezes, é melhor estourar... Gritar... Exigir... É
difícil manter a autoridade a fim de cuidar não só de um aluno, mas dos outros também. Sofrido manter-se sóbrio quando te obrigam consumir o que te embriaga de diferentes sentimentos. Teria sido melhor se fosse autoritária, rude, áspera... Sim, ela queria sair dali.
Quando
ele dobrou o último canto para a saída do colégio, voltou-se e balançou a mão:
Riu
e sorriu e acenou carinhosamente...
Afinal essa era a profissão que escolhera!! Menino danado. Danado mesmo.
Afinal essa era a profissão que escolhera!! Menino danado. Danado mesmo.
-
Até amanhã, Esdras!
Sara Maria / Março
de 2012.
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