Filosofar é preciso!!
Vamos ao texto??
“Quando duas pessoas querem dialogar, duas condições prévias
são imprescindíveis: 1) que elas sejam indivíduos diferentes, e 2) que elas
tenham alguma coisa em comum.
Se não houver nenhuma
diferença significativa, se as duas disserem exatamente a mesma coisa, cada uma
delas repetindo o que a outra acabou de dizer, teremos não um diálogo, mas um
monólogo a duas vozes. Por outro lado, se os dois parceiros do diálogo forem
tão completamente diferentes que não tenham sequer um ponto de encontro e nem
mesmo consigam falar a mesma língua, o diálogo se torna inviável.
O indivíduo é o ser singular, tem uma identidade que o distingue
de todos os outros, uma personalidade própria (é o que os antigos gregos chamavam
de ídion). No entanto, esse ídion existe em constante intercâmbio com os
outros, é formado pela sociedade, depende do grupo. Leva um tempão para
aprender a andar, a falar, e muito mais tempo ainda para aprender a lutar pela
vida, a sobreviver por conta própria. Existe , portanto, em comunidade (o que
os antigos gregos chamavam de koinonia).
Nas atuais condições históricas, a importância da autonomia
individual é sublinhada pela onda de individualismo que se nota na cultura dita
“pós-moderna”. Com boas razões, as pessoas
repelem a pressão que as tenta anexar a coletividades estruturadas de
forma sufocante.
Querendo ou não, pertencemos todos a uma vasta comunidade: o gênero
humano. Mas a humanidade é grande demais, não conseguimos enxergá-la. Recorremos,
então, a comunidades menores, que substituem a espécie humana. Uns se integram
(ou entregam?) em partidos políticos, outros a seitas religiosas, muitos se
contentam a pertencer a um clube de futebol ou a uma escola de samba, alguns se
definem como sócios de um clube ou membros de uma corporação profissional. Isso
pode ser bom ou pode ser ruim, dependendo do espírito com o que o sujeito vive
sua pertinência à “pequena comunidade”: com espaço para a tolerância, o diálogo
e o humor.
Mas há gente que se recusa a participar de qualquer koinonia
e insiste em ser apenas um indivíduo isolado. O preço pago por essa opção
individualista drástica costuma ser alto. O sujeito posto em estado de solidão
pode pensar que está desenvolvendo uma reflexão original, profunda,
enriquecedora, no entanto pode estar somente emburrecendo, por falta de
interlocutores. Vale a pena lembrarmos que os antigos gregos já alertavam para
esse risco: no idioma deles, o superlativo de ídion (singular) era idiotes.
O individuo singular é formado socialmente, ele se individualiza
na relação com os outros. Sua singularidade (originalidade?) se desenvolve com
base naincorporação crítica das experiências alheias, num movimento incessante
de ir ao outro para crescer. O idiotes é o sujeito que instalado em si mesmo,
se sente dispensado de qualquer esforço de auto-superação. A rigor, se trata de
alguém que não supor ta o diálogo com o outro, já que o outro, o interlocutor
que pensa diferente, lhe parecerá sempre o agente de um desacato, a encarnação de
um desaforo, um delinqüente, que merece sofrer medidas policiais.
Dispor-se ao diálogo, tentar falar para o outro, já é uma opção
promissora, que pode ter preciosas implicações humanistas e democráticas. Para
prosseguir no caminho dialógico, o sujeito precisa aprimorar sua capacidade de
argumentar ad hominem, quer dizer, sua capacidade de falar de modo
razoável, em termos que o seu interlocutor – com base no que já sabe – possa
entender.
Debruça-se autocriticamente sobre si mesmo, o sujeito que se
dispõe a trilhar o caminho do diálogo
precisa tentar reexaminar sua inserção em grupos, coletividades,
comunidades que eventualmente lhe servem
como substitutas da espécie humana (dentro de certos limites, é claro).
Precisa verificar, no diálogo, se tem sido e continua a ser um bom
companheiro de partido, um correligionário maduro e consciencioso, um parceiro
leal e correto, um colega bem-educado e cordial, ou se às vezes tropeça em
atitudes intolerantes e fanáticas, em azedumes ou mesquinharias, cultivando mal-entendidos
em vez de contribuir para proporcionar esclarecimentos.
Precisa, também, de tempos em tempos, observar criticamente a
coletividade em que está inserido, para ver se ela está proporcionando aos seus
integrantes possibilidades concretas de elas combinarem suas respectivas
singularidades com os meios concretos de uma inserção mais efetiva – mais
universal! – no movimento social.
Essa inserção é fundamental. Depois de ter sido formado pela
sociedade, o indivíduo passa a se orientar livremente, a fazer escolhas pelas
quais é responsável, e é desafiado a participar ativamente da transformação da
sociedade que o formou. As associações que até certo ponto funcionam como
substitutas do gênero humano devem oferecer a seus membros possibilidades
concretas de pensarem e agirem seu estreitezas ideológicas, na condição de
cidadãos do mundo, de representantes da humanidade.
Se não fazem isso, essas associações podem atrapalhar a
formação de uma consciência humanista e democrática. Se, contudo, se abrem para
o convívio jovial com a ampla diversidade da condição humana, elas ajudam muito
a fortalecer o espírito da democracia.
E mantêm vivo o espírito do humanismo.”
Fonte:
KONDER, Leandro. O 'idion' e o 'idiotes'. In: FARACO, Carlos Alberto.
Português: língua e cultura, ensino médio, 3ª série. Curitiba: Base Editora, 2005. p.
28-30.
Fonte da foto: http://www.sescsp.org.br/sesc/revistas/revistas_link.cfm?Edicao_Id=404&Artigo_ID=6178&IDCategoria=7135&reftype=2 |