quinta-feira, 29 de março de 2012

"QUE É - SIMPATIA" por Casimiro de Abreu




"Simpatia - é o sentimento Que nasce num só momento,  
Sincero, no coração;
São dois olhares acesos
Bem juntos, unidos, presos
Numa mágica atração.


Simpatia - são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longe às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.


São duas almas bem gêmeas
Que riem no mesmo riso,
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.


Simpatia - meu anjinho,
É o canto de passarinho,
É o doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d'agosto
É o que m'inspira teu rosto...
- Simpatia - é quase amor!"

domingo, 25 de março de 2012

A VIDA É ASSIM por João Guimarães Rosa


"O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem".

sábado, 17 de março de 2012

TENHO TANTO SENTIMENTO por Fernando Pessoa





"Tenho tanto sentimento 
Que é freqüente persuadir-me 
De que sou sentimental, 
Mas reconheço, ao medir-me, 
Que tudo isso é pensamento, 
Que não senti afinal. 


Temos, todos que vivemos, 
Uma vida que é vivida 
E outra vida que é pensada, 
E a única vida que temos 
É essa que é dividida 
Entre a verdadeira e a errada. 


Qual porém é a verdadeira 
E qual errada, ninguém 
Nos saberá explicar; 
E vivemos de maneira 
Que a vida que a gente tem 
É a que tem que pensar. "

Fernando Pessoa

sexta-feira, 16 de março de 2012

CONTO DE ESCOLA por Sara Menck




Ao término da aula, foi o último a sair. Passou pela professora e jogou a régua emprestada com toda a força sobre a mesa.

- Esdras, quando alguém nos empresta alguma coisa, precisamos, ao entregar, de agradecer, certo?

 Ergueu e abaixou os ombros. Saiu da sala assim. Foi.  Ganhou o espaço do pátio. Caminhou firme, passos fortes.  A professora foi atrás, observando o jeitão mal criado de erguer e abaixar os ombros várias vezes. 

E foi assim enquanto caminhava até a porta de saída, muitas vezes, ergueu e abaixou os ombros.

Menino danado. Que fazer com aquilo?

Em silêncio, ela o seguiu.  Menino danado mesmo. Agora ia à sua frente e nos gestos demonstrava  que não fazia caso.

Ela sacudiu a cabeça; queria saber a melhor maneira de lidar com ele.  Será que fizera errado? Teria sido muito melhor ter entregue o “material”, apesar de toda a grosseria. O menino jamais veria como um presente da professora, apenas como a mais um direito a alguma coisa que a sociedade lhe dava. Não era justo entregar o presente daquela forma.  Ela comprara para fazer um agrado, um carinho a eles. Não era uma coisa que ele deveria arrancar dela com tamanha grosseria. Até entendia que era criança e queria o presente, mas não daquela forma. Era um presente apenas.

 Ainda uma vez, ergueu e abaixou os ombros... . É assim que caminha a educação!  Ela riu do próprio pensamento ambíguo, caminhando lentamente atrás do garoto.

Ele à sua frente e ela confusa. Que poderia fazer para consertar a situação?  Ele era o tipo que fazia despertar sentimentos barrocos nela. Extremos mesmo.

O primeiro encontro ja fora desastroso.  Era uma turminha que precisava de apoio. Mais que apoio, precisavam aprender de verdade para serem aprovados aquele ano. Mas o Esdras era diferente dos demais. Inteligente mesmo. Lia e compreendia os mais diversos textos. Era bom na escrita. Não fosse as circunstancias da sala de aula em seu período normal, não precisaria daquelas aulas no turno inverso.

- Esdras... Bonito nome!! Você sabe a história do seu nome?

- Não, não sei, você é que é a professora é que deve saber!

 O pergunta infeliz. Sabia pouco demais a respeito desse nome. E o pior, o menino era danado. Danado mesmo. Melhor mudar o foco da questão.

-  Eu fui infeliz na pergunta. Gostaria de saber se a sua mãe te contou a respeito do seu nome.

- Não, não contou nada. Conta você.

Ficou pior.  Melhor ser sincera.

- Bom, vou pesquisar, certo? Sei pouco a respeito do seu nome... Gostei mesmo do seu nome...

Foi um olhar questionador e terno:

- E  aí me conta, professora. Agora eu também fiquei curioso.

Depois disso, ele se tornara amável, simpático de verdade. Chegava sorrindo. Cumprimentava. E o melhor, a professora gostava do modo como ele aprendia. Garotinho inteligente. Menino danado. Era bom na leitura. O primeiro a responder. As respostas coerentes.

E agora ele caminhava à frente da professora. E ela sentia que precisava ensinar algo mais a ele. Outra vez, riu dela mesma. Seria ela a estranha? Como agir para também - de alguma forma - orientar as crianças. Muitas vezes, as ações falam mais alto em sala de aula, pensou.

Aquela turminha  apresentava alguns problemas bastante graves, sobretudo, em suas linguagens. Mas o comportamento era sobremaneira terrível. Eram totalmente inadequados. Gritavam. Falavam palavrões. Mexiam nos pertences dos outros. Não sabiam ouvir.  Falavam quase todos ao mesmo tempo. Durante as atividades, quando um precisava de algum objeto e não tinha, solicitava “emprestado” quase sempre de modo inusitado. Algumas vezes, ela via borracha, lápis, apontador, régua ou, até mesmo,  caderno voando pela sala.

Como isso a irritava, resolveu conversar com a turma, a fim de que se comportassem mais príncipes e menos ogros. Não teve sucesso e acabou combinando com eles de que iria comprar alguns desses materiais para presenteá-los; já que não tinham o material completo. Passou uma lista e fizeram as suas solicitações.

E lá estava o menino cheio de querer. Era esperto, aprendia com facilidade, e queria bastante. Queria tudo.

 No dia da entrega dos presentes, não apareceu e depois demorou em reaparecer. Assiduidade não era um compromisso dele.

 Um dia, antes de entrar na sala de aula, a professora ouviu um grito:

 - Você vai entregar o meu material hoje?

Entrou e, antes mesmo de falar com as crianças, lá estava o Esdras.

- E o meu material, professora, esta surda agora?

- Espera aí... Que material? – Procurou acalmar-se. Precisava disso.

Nossa! Alguns sóis já eram passados após a entrega do presente à turma e ela tinha ali, à sua frente, um menininho com um comportamento, no mínimo, estranho. Que que era aquilo? As mãos na cintura, o olhar frio e a voz em tom agudo.

- Esdras, sente-se, por favor! -  Ele queria o que lhe era de direito imediatamente e antes de tudo. – Depois falo com você.

Havia agressão na insistente voz aguda. Não era possível que aquele menino não tinha a menor noção do que fazia. Será que tinha o direito àquele presente? Ficou confusa.  Procurou firmeza até acertar a turma.

Naquela circunstância, eram muito felizes na leitura de um livro. Respirou fundo. Não queria ficar brava, nem brigar com o garoto. Acertou a turma e fizeram o círculo para a leitura.

Bom, ela não trouxera o presente; não via o menino há algumas aulas. E depois que fizera a distribuição do material – réguas, borrachas, lápis, apontadores -  para as crianças, separara alguns para as emergências que fatalmente se dariam ali.  Não podia hesitar:

- Esdras, você tem faltado às aulas. Eu já entreguei o material para as crianças. E o seu não está aqui agora. Sente-se, por favor!

- Então vai buscar o meu material agora!

Olhou em seus olhos e tentou ainda uma vez:

- Esdras, sente-se. Depois eu vejo isso -.  Apesar de tudo, ela conhecia bem o tom da autoridade.

Acomodou-se contrafeito.

E quando íam começar, eis que surge um novo problema: o menino resolvera sentar-se no fundo da sala e debruçara sobre a carteira. Emburrou. Empacou de vez. 

Continuou firme. “ Deixem ele lá! Vamos ao texto!” Mas ele batia fortemente  na carteira.

Contou até dez. Precisava manter a calma e arrumar uma saída melhor para não perder o controle. No fundo, tudo o que ele queria era tumultuar a aula.

Claro, a vingança!

A única coisa que ocorreu à professora foi propor uma brincadeira às crianças:

- Vamos fingir que estamos lendo, não olhamos para ele. Quem sabe, assim ele para .

Durou um tempo o barulho.

 E uma irritação atacou um outro que verdadeiramente berrou com o Esdras. Melhor assim. Ela não entregara o seu estresse. Precisava manter-se calma.  Falou mais baixo do que de costume. Teve sorte dessa vez. Foi possível ler e até “esqueceram” a confusão do Esdras que permanecera emburrado la no fundo da sala.

Que fazer com aquilo? Agradar? Buscar o material e entregar como se nada tivesse acontecido?

 Escolheu fingir que não estava entendendo.

Na hora de realizar as atividades, ele ja tinha melhorado, mas caminhou nervosinho até a mesa da professora:

-  Me dá a sua régua, porque eu não tenho régua!

Ela precisava ser persistente também, mas tentou encontrar alguma doçura na voz. Queria ensinar alguma coisa ao Esdras.  

- Empresto, mas não se esqueça de me devolver no final da aula, por favor.
 
Foi o último a sair e agora caminhava à sua frente com aqueles modos.  Não falou mais nada. Tinha consciência da atitude inadequada durante todo o tempo.  Não olhou para a professora nenhuma vez. 

Era melhor deixá-lo ir, ou seria melhor chamá-lo. Situação confusa. Ele tinha sido muito mal educado. Falar o quê? Poderia apenas levá-lo até a sala dos professores e entregar o material e pronto. Mas e aqueles modos?

Ela precisava respirar e digerir aquela coisa sufocada que entrara pela boca, soava nos ouvidos, descia pelo nariz, explodia nos olhos, corria no sangue, ferventava o cérebro e fazia o coração bater diferente.

Queria ir embora. Precisava pensar naquilo tudo. Melhor mesmo esquecer.  Conversaria com ele depois. Naquele momento, queria apenas ir embora.  Que sutil estresse consumia o seu corpo. Melhor seria tê-lo feito sair da sala. Manter-se calma foi o seu erro. Às vezes, é melhor estourar. Gritar. Exigir. É difícil manter a autoridade. Teria sido melhor se fosse autoritária...

 Quando ele dobrou o último canto para a saída do colégio, voltou-se e balançou a mão:

- Tchau, professora!

Sorriu e acenou carinhosamente... Eita coração frágil!! Menino danado. Danado mesmo.

- Até amanha, Esdras!


Sara Maria  /   Março de 2012.

quinta-feira, 15 de março de 2012

AMOR FRATERNAL por Sara Menck




Quando cuidas em fazer que não amem teu irmão
É porque carregas no peito uma mágoa que machuca
E distrai o que trazes de bom no coração...


Isso é uma chaga que em teu peito agarrou,
Ocultando o que tens de melhor.
Abra teus olhos e vê: mais dor ainda pode haver.
Não, não espalhe tanto desamor...


Entregue a tua mágoa ao Esquecimento
Para que não haja mal maior
E a outros seres também não contamine.
Deixe, deixe isso longe de ti!!

Há de ser que ela impeça teu pobre coração
De se enriquecer com  teu perdão.


Zele mais de ti!
E quando fores orar
Não permita essa nuvem!
Ela pode impedir o anjo a tua oração levar...


E, assim, possas tu repousar
Sem a ruga do remorso,
 perturbando a tua pálpebra.

Deixa-te tornar-te leve.
Sigam juntos.
Tens uma história a gravar.

E quando - por ventura - vierem as dores,
E mesmo quando os passos se tornarem lentos,
Possa encontrar um recíproco alento
O bom amigo; o companheiro sempre.



Terás -  então - aquele bom irmão
 que te conhece a fundo
E  ainda assim te ama!


E quando tiverem findando de subir toda a montanha,
E o vento da noite  a se aproximar vier,
Sentirás ele carregado desta extrema doçura:


A união que fraternalmente se fez 

Na linha do tempo pousar.



Sara Maria  em  12 de março de 2012

quarta-feira, 14 de março de 2012

14 de março - Dia Nacional da Poesia - Castro Alves; Olavo Bilac; Vinicius de Moraes

PERGUNTAS  E  RESPOSTAS


DONDE VENS? — Venho de um seio!


Onde vais? — A um coração!


Quem te inspira? — A voz de um anjo!


Qual é teu nome? — Afeição!...



Castro Alves



Língua portuguesa


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...


Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,

Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!



Olavo Bilac





A um passarinho


Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis.

Deixa-te de histórias
Some-te daqui

Vinicius de Moraes



segunda-feira, 12 de março de 2012

O OSCAR E O INCENTIVO À LEITURA: "The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore" por Sara Menck

         "The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore" é uma linda curta metragem!  Um pequeno vídeo que ganhou o Oscar/2012 nessa categoria.  Nele, podemos sentir o poder que o livro tem de transportar o leitor.
No começo, Mr Morris Lessmore está escrevendo na varanda do hotel e é transportado por uma ventania a uma terra cheia de livros.  Pelo que consta, foi inspirado no furação Katrina (Buster Keaton). Há também uma intertextualidade com o Mágico de Oz e Charles Chaplin.  E o que é mais interessante, esse gostar demais de livros.
Como o Mr Morris não tinha terminado o seu livro e fora transportado pela tempestade, ele acaba chegando a um lugar com muitos livros...
Lá, ele pode adquirir mais ideias, mais palavras, mais pensamentos e realizar o seu livro e ainda levar a outros o seu gosto pela leitura, tornando-os coloridos... 
Lindo mesmo! Vale a pena ver!
Sara Maria



domingo, 11 de março de 2012

"CONJUGAÇÃO" por Affonso Romano de Sant'Ana



"Eu falo
tu ouves
ele cala.

 
Eu procuro
tu indagas
ele esconde.

 
Eu planto
tu adubas
ele colhe.

 
Eu ajunto
tu conservas
ele rouba.

Eu defendo
tu combates
ele entrega.

Eu canto
tu calas
ele vaia.


Eu escrevo
tu me lês
ele apaga."


Affonso Romano de Sant'Ana

sábado, 10 de março de 2012

"PORQUE SEMPRE DESTOO" por Noemi Carnielli Do Prado

 
"Porque sempre destoo
destas misérias inventivas
que se dizem amor
sem nunca haverem sido.

...
E se desafino, nessa sinfonia
é por ânsia de felicidade, crua,
de paz e verdade, despidas.

Que eu não pergunte,
que eu não duvide.

Que eu me transborde
na simples certeza.
By Noemi Carnielli do Prado

Isso é amor."
 
Noemi Carnielli do Prado

quinta-feira, 8 de março de 2012

"A MOÇA TECELÃ" por Marina Colasanti




    " Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas da noite. E logo sentava-se ao tear.

      Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor da luz, que ela ia passando entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
 
A Moça Tecelã

    Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que nunca acabava.

   Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as pétalas, a moça colocava na lançadeira grossos fios cinzentos do algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.

   Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que o sol voltasse a acalmar a natureza.

    Assim, jogando a lançadeira de um lado para outro e batendo os grandes pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias.

   Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.

    Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

   Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez pensou em como seria bom ter um marido ao lado.

  Não esperou o dia seguinte. Com capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava justamente acabando de entremear o último fio da ponto dos sapatos, quando bateram à porta.

   Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de pluma, e foi entrando em sua vida.

   Aquela noite, deitada no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.

   E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque tinha descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar.

— Uma casa melhor é necessária — disse para a mulher. E parecia justo, agora que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os batentes, e pressa para a casa acontecer.

   Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente.

— Para que ter casa, se podemos ter palácio? — perguntou. Sem querer resposta imediatamente ordenou que fosse de pedra com arremates em prata.

  Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía lá fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol. A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia, enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.

  Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
 

   É para que ninguém saiba do tapete, - disse. E antes de trancar a porta à chave, advertiu:


    - Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos! Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer.

E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar sozinha de novo. Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.


  Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. 
   E  novamente se viu na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.  
 

  A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou, e espantado olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu- lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.

  Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte."

COLASANTI, Marina. A moça tecelã. In:  Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio de Janeiro: Global Editora, 2000.




Marina Colasanti


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