O RETIRANTE EXPLICA AO
LEITOR QUEM É E A QUE VAI
— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de
pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem
fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco
havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros
tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu
vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se
equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o
sangue
que usamos tem pouca
tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se
morre
de velhice antes dos
trinta,
de emboscada antes dos
vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas
pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais
extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença
emigra.
ENCONTRA DOIS HOMENS
CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE, AOS GRITOS DE "Ó IRMÃOS DAS ALMAS! IRMÃOS
DAS ALMAS! NÃO FUI EU QUE MATEI NÃO!"
— A quem estais
carregando,
irmãos das almas,
embrulhado nessa rede?
dizei que eu saiba.
— A um defunto de nada,
irmão das almas,
que há muitas horas viaja
à sua morada.
— E sabeis quem era ele,
irmãos das almas,
sabeis como ele se chama
ou se chamava?
— Severino Lavrador,
irmão das almas,
Severino Lavrador,
mas já não lavra.
— E de onde que o estais
trazendo,
irmãos das almas,
onde foi que começou
vossa jornada?
— Onde a Caatinga é mais
seca,
irmão das almas,
onde uma terra que não dá
nem planta brava.
— E foi morrida essa
morte,
irmãos das almas,
essa foi morte morrida
ou foi matada?
— Até que não foi
morrida,
irmão das almas,
esta foi morte matada,
numa emboscada.
— E o que guardava a
emboscada,
irmão das almas,
e com que foi que o
mataram,
com faca ou bala?
— Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
— E quem foi que o
emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
— Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
— E o que havia ele
feito,
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
— Ter um hectares de
terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
— Mas que roças que ele
tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
— Nos magros lábios de
areia,
irmão das almas,
os intervalos das pedras,
plantava palha.
— E era grande sua
lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
— Tinha somente dez
quadros,
irmão das almas,
todas nos ombros da
serra,
nenhuma várzea.
— Mas então por que o
mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o
mataram
com espingarda?
— Queria mais
espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
— E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
— Mais campo tem para
soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
— E onde o levais a
enterrar,
irmãos das almas,
com a semente de chumbo
que tem guardada?
— Ao cemitério de Torres,
irmão das almas,
que hoje se diz Toritama,
de madrugada.
— E poderei ajudar,
irmãos das almas?
vou passar por Toritama,
é minha estrada.
— Bem que poderá ajudar,
irmão das almas,
é irmão das almas quem
ouve
nossa chamada.
— E um de nós pode
voltar,
irmão das almas,
pode voltar daqui mesmo
para sua casa.
— Vou eu, que a viagem é
longa,
irmãos das almas,
é muito longa a viagem
e a serra é alta.
— Mais sorte tem o
defunto,
irmãos das almas,
pois já não fará na volta
a caminhada.
— Toritama não cai longe,
irmão das almas,
seremos no campo santo
de madrugada.
— Partamos enquanto é
noite,
irmão das almas,
que é o melhor lençol dos
mortos
noite fechada.
O RETIRANTE TEM MEDO DE
SE EXTRAVIAR PORQUE SEU GUIA, O RIO CAPIBARIBE, CORTOU COM O VERÃO
— Antes de sair de casa
aprendi a ladainha
das vilas que vou passar
na minha longa descida.
Sei que há muitas vilas
grandes,
cidades que elas são
ditas;
sei que há simples
arruados,
sei que há vilas
pequeninas,
todas formando um rosário
cujas contas fossem
vilas,
todas formando um rosário
de que a estrada fosse a
linha.
Devo rezar tal rosário
até o mar onde termina,
saltando de conta em
conta,
passando de vila em vila.
Vejo agora: não é fácil
seguir essa ladainha;
entre uma conta e outra
conta,
entre uma a outra
ave-maria,
há certas paragens
brancas,
de planta e bicho vazias,
vazias até de donos,
e onde o pé se
descaminha.
Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pêlo
hirsuto desta caatinga.
Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais
certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a
descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem
sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não
caminham.
Tenho de saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que
escancaradas
frente a mim se
multiplicam.
Mas não vejo almas aqui,
nem almas mortas nem
vivas;
ouço somente à distância
o que parece cantoria.
Será novena de santo,
será algum mês-de-Maria;
quem sabe até se uma
festa
ou uma dança não seria?
NA CASA A QUE O RETIRANTE
CHEGA ESTÃO CANTANDO EXCELÊNCIAS PARA UM DEFUNTO, ENQUANTO UM HOMEM, DO LADO DE
FORA,VAI PARODIANDO AS PALAVRAS DOS CANTADORES
— Finado Severino, quando
passares em Jordão e o demônios te atalharem perguntando o que é que levas...
— Dize que levas cera,
capuz e cordão mais a Virgem da Conceição.
— Finado Severino, etc.
...
— Dize que levas somente
coisas de não: fome, sede, privação.
— Finado Severino, etc.
...
— Dize que coisas de não,
ocas, leves: como o caixão, que ainda deves.
— Uma excelência dizendo
que a hora é hora.
— Ajunta os carregadores
que o corpo quer ir embora.
— Duas excelências...
— ... dizendo é a hora da
plantação.
— Ajunta os
carregadores...
— ... que a terra vai
colher a mão.
CANSADO DA VIAGEM O
RETIRANTE PENSA INTERROMPÊ-LA POR UNS INSTANTES E PROCURAR TRABALHO ALI ONDE SE
ENCONTRA.
— Desde que estou
retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva;
só a morte tem encontrado
quem pensava encontrar
vida,
e o pouco que não foi
morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas porque
parar aqui eu não podia
e como o Capibaribe
interromper minha linha?
ao menos até que as águas
de uma próxima invernia
me levem direto ao mar
ao refazer sua rotina?
Na verdade, por uns
tempos,
parar aqui eu bem podia
e retomar a viagem
quando vencesse a fadiga.
Ou será que aqui cortando
agora minha descida
já não poderei seguir
nunca mais em minha vida?
(será que a água destes
poços
é toda aqui consumida
pelas roças, pelos
bichos,
pelo sol com suas
línguas?
será que quando chegar
o rio da nova invernia
um resto de água no
antigo
sobrará nos poços ainda?)
Mas isso depois verei:
tempo há para que decida;
primeiro é preciso achar
um trabalho de que viva.
Vejo uma mulher na
janela,
ali, que se não é rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho
poderá me dar notícia.
DIRIGE-SE À MULHER NA
JANELA QUE DEPOIS DESCOBRE TRATAR-SE DE QUEM SE SABERÁ
— Muito bom dia, senhora,
que nessa janela está;
sabe dizer se é possível
algum trabalho encontrar?
— Trabalho aqui nunca
falta
a quem sabe trabalhar;
o que fazia o compadre
na sua terra de lá?
— Pois fui sempre
lavrador,
lavrador de terra má;
não há espécie de terra
que eu não possa
cultivar.
— Isso aqui de nada
adianta,
pouco existe o que
lavrar;
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
— Também lá na minha
terra
de terra mesmo pouco há;
mas até a calva da pedra
sinto-me capaz de arar.
— Também de pouco
adianta,
nem pedra há aqui que
amassar;
diga-me ainda, compadre,
que mais fazia por lá?
— Conheço todas as roças
que nesta chã podem dar:
o algodão, a mamona,
a pita, o milho, o caroá.
— Esses roçados o banco
já não quer financiar;
mas diga-me, retirante,
o que mais fazia lá?
— Melhor do que eu
ninguém
sei combater, quiçá,
tanta planta de rapina
que tenho visto por cá.
— Essas plantas de rapina
são tudo o que a terra
dá;
diga-me ainda, compadre;
que mais fazia por lá?
— Tirei mandioca de chãs
que o vento vive a
esfolar
e de outras escalavradas
pela seca faca solar.
— Isto aqui não é Vitória
nem é Glória do Goitá;
e além da terra, me diga,
que mais sabe trabalhar?
— Sei também tratar de
gado,
entre urtigas pastorear:
gado de comer do chão
ou de comer ramas no ar.
— Aqui não é Surubim
nem Limoeiro, oxalá!
mas diga-me, retirante,
que mais fazia por lá?
— Em qualquer das cinco
tachas
de um banguê sei
cozinhar;
sei cuidar de uma moenda,
de uma casa de purgar.
— Com a vinda das usinas
há poucos engenhos já;
nada mais o retirante
aprendeu a fazer lá?
— Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou
aprenderá:
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a
suportar.
— Mas isso então será
tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.
— Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não,
trabalhar.
— Essa vida por aqui
é coisa familiar;
mas diga-me retirante,
sabe benditos rezar?
sabe cantar excelências,
defuntos encomendar?
sabe tirar ladainhas,
sabe mortos enterrar?
— Já velei muitos
defuntos,
na serra é coisa vulgar;
mas nunca aprendi as
rezas,
sei somente acompanhar.
— Pois se o compadre
soubesse
rezar ou mesmo cantar,
trabalhávamos a meias,
que a freguesia bem dá.
— Agora se me permite
minha vez de perguntar:
como senhora, comadre,
pode manter o seu lar?
— Vou explicar
rapidamente,
logo compreenderá:
como aqui a morte é
tanta,
vivo de a morte ajudar.
— E ainda se me permite
que volte a perguntar:
é aqui uma profissão
trabalho tão singular?
— É, sim, uma profissão,
e a melhor de quantas há:
sou de toda a região
rezadora titular.
— E ainda se me permite
mais outra vez indagar:
é boa essa profissão
em que a comadre ora
está?
— De um raio de muitas
léguas
vem gente aqui me chamar;
a verdade é que não pude
queixar-me ainda de azar.
— E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim nesse lugar?
— Como aqui a morte é
tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que
fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao
mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de
plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.
O RETIRANTE CHEGA À ZONA
DA MATA, QUE O FAZ PENSAR, OUTRA VEZ, EM INTERROMPER A VIAGEM
— Bem me diziam que a
terra
se faz mais branda e
macia
quando mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nesta terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a
vista.
Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água
mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira.
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?
Não tenho medo de terra
(cavei pedra toda a
vida),
e para quem lutou a braço
contra a piçarra da
Caatinga
será fácil amansar
esta aqui, tão feminina.
Mas não avisto ninguém,
só folhas de cana fina;
somente ali à distância
aquele bueiro de usina;
somente naquela várzea
um banguê velho em ruína.
Por onde andará a gente
que tantas canas cultiva?
Feriando: que nesta terra
tão fácil, tão doce e
rica,
não é preciso trabalhar
todas as horas do dia,
os dias todos do mês,
os meses todos da vida.
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos
trinta
nem sabe da morte em
vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.
ASSISTE AO ENTERRO DE UM
TRABALHADOR DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO
CEMITÉRIO
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra
alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e
trator.
— Trabalhando nessa
terra,
tu sozinho tudo
empreitas:
serás semente, adubo,
colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te
veste:
embora com o brim do
Nordeste.
— Será de terra tua
derradeira camisa:
te veste, como nunca em
vida.
— Será de terra e tua
melhor camisa:
te veste e ninguém
cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu
fato:
e pela primeira vez,
sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou
véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de
fazenda:
não se rasga nem se
remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à
medida.
— Esse chão te é bem conhecido
(bebeu teu suor vendido).
— Esse chão te é bem
conhecido
(bebeu o moço antigo).
— Esse chão te é bem
conhecido
(bebeu tua força de
marido).
— Desse chão és bem
conhecido
(através de parentes e
amigos).
— Desse chão és bem
conhecido
(vive com tua mulher,
teus filhos).
— Desse chão és bem
conhecido
(te espera de
recém-nascido).
— Não tens mais força
contigo:
deixa-te semear ao
comprido.
— Já não levas semente
viva:
teu corpo é a própria
maniva.
— Não levas rebolo de
cana:
és o rebolo, e não de
caiana.
— Não levas semente na
mão:
és agora o próprio grão.
— Já não tens força na
perna:
deixa-te semear na
coveta.
— Já não tens força na
mão:
deixa-te semear no
leirão.
— Dentro da rede não
vinha nada,
só tua espiga debulhada.
— Dentro da rede vinha
tudo,
só tua espiga no sabugo.
— Dentro da rede coisa
vasqueira,
só a maçaroca banguela.
— Dentro da rede coisa
pouca,
tua vida que deu sem
soca.
— Na mão direita um
rosário,
milho negro e ressecado.
— Na mão direita somente
o rosário, seca semente.
— Na mão direita, de
cinza,
o rosário, semente
maninha.
— Na mão direita o
rosário,
semente inerte e sem
salto.
— Despido vieste no
caixão,
despido também se enterra
o grão.
— De tanto te despiu a
privação
que escapou de teu peito
a viração.
— Tanta coisa despiste em
vida
que fugiu de teu peito a
brisa.
— E agora, se abre o chão
e te abriga,
lençol que não tiveste em
vida.
— Se abre o chão e te
fecha,
dando-te agora cama e
coberta.
— Se abre o chão e te
envolve,
como mulher com quem se dorme.
O RETIRANTE RESOLVE
APRESSAR OS PASSOS PARA CHEGAR LOGO AO RECIFE
— Nunca esperei muita
coisa,
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
de tal velhice que chega
antes de se inteirar
trinta;
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal
medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco
ainda.
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a
Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui
a Mata
a diferença é a mais
mínima.
Está apenas em que a
terra
é por aqui mais macia;
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte
ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre, com
a mesma chama mortiça.
Agora é que compreendo
porque em paragens tão
ricas
o rio não corta em poços
como ele faz na Caatinga:
vivi a fugir dos remansos
a que a paisagem o
convida,
com medo de se deter
grande que seja a fadiga.
Sim, o melhor é apressar
o fim desta ladainha,
o fim do rosário de nomes
que a linha do rio enfia;
é chegar logo ao Recife,
derradeira ave-maria
do rosário, derradeira
invocação da ladainha,
Recife, onde o rio some
e esta minha viagem se
fina.
CHEGANDO AO RECIFE, O
RETIRANTE SENTA-SE PARA DESCANSAR AO PÉ DE UM MURO ALTO E CAIADO E OUVE, SEM
SER NOTADO, A CONVERSA DE DOIS COVEIROS
— O dia de hoje está
difícil;
não sei onde vamos parar.
Deviam dar um aumento,
ao menos aos deste setor
de cá.
As avenidas do centro são
melhores,
mas são para os
protegidos:
há sempre menos trabalho
e gorjetas pelo serviço;
e é mais numeroso o
pessoal
(toma mais tempo enterrar
os ricos).
— Pois eu me daria por
contente
se me mandassem para cá.
Se trabalhasses no de
Casa Amarela
não estarias a reclamar.
De trabalhar no de Santo
Amaro
deve alegrar-se o colega
porque parece que a gente
que se enterra no de Casa
Amarela
está decidida a mudar-se
toda para debaixo da
terra.
— É que o colega ainda
não viu
o movimento: não é o que
se vê.
Fique-se por aí um
momento
e não tardarão a aparecer
os defuntos que ainda
hoje
vão chegar (ou partir,
não sei).
As avenidas do centro,
onde se enterram os
ricos,
são como o porto do mar:
não é muito ali o
serviço:
no máximo um
transatlântico
chega ali cada dia,
com muita pompa,
protocolo,
e ainda mais cenografia.
Mas este setor de cá
é como a estação dos
trens:
diversas vezes por dia
chega o comboio de
alguém.
— Mas se teu setor é
comparado
à estação central dos
trens,
o que dizer de Casa
Amarela
onde não pára o vaivém?
Pode ser uma estação
mas não estação de trem:
será parada de ônibus,
com filas de mais de cem.
— Então por que não
pedes,
já que és de carreira, e
antigo,
que te mandem para Santo
Amaro
se achas mais leve o
serviço?
Não creio que te
mandassem
para as belas avenidas
onde estão os endereços
e o bairro da gente fina:
isto é, para o bairro dos
usineiros,
dos políticos, dos
banqueiros,
e no tempo antigo, dos
banguezeiros
(hoje estes se enterram
em carneiros);
bairro também dos
industriais,
dos membros das
associações patronais
e dos que foram mais
horizontais
nas profissões liberais.
Difícil é que consigas
aquele bairro, logo de
saída.
— Só pedi que me
mandassem
para as urbanizações
discretas,
com seus quarteirões
apertados,
com suas cômodas de
pedra.
— Esse é o bairro dos
funcionários,
inclusive
extranumerários,
contratados e mensalistas
(menos os tarefeiros e
diaristas).
Para lá vão os
jornalistas,
os escritores, os
artistas;
ali vão também os
bancários,
as altas patentes dos
comerciários,
os lojistas, os
boticários,
os localizados
aeroviários
e os de profissões
liberais
que não se liberaram
jamais.
— Também um bairro dessa
gente
temos no de Casa Amarela:
cada um em seu escaninho,
cada um em sua gaveta,
com o nome aberto na
lousa
quase sempre em letras
pretas.
Raras as letras douradas,
raras também as gorjetas.
— Gorjetas aqui, também,
só dá mesmo a gente rica,
em cujo bairro não se
pode
trabalhar em mangas de
camisa;
onde se exige quépi
e farda engomada e limpa.
— Mas não foi pelas
gorjetas,
não, que vim pedir
remoção:
é porque tem menos
trabalho
que quero vir para Santo
Amaro;
aqui ao menos há mais
gente
para atender a freguesia,
para botar a caixa cheia
dentro da caixa vazia.
— E que disse o
Administrador,
se é que te deu ouvido?
— Que quando apareça a
ocasião
atenderá meu pedido.
— E do senhor
Administrador
isso foi tudo que
arrancaste?
— No de Casa Amarela me
deixou
mas me mudou de
arrabalde.
— E onde vais trabalhar
agora,
qual o subúrbio que te
cabe?
— Passo para o dos
industriários,
que é também o dos
ferroviários,
de todos os rodoviários
e praças-de-pré dos
comerciários.
— Passas para o dos
operários,
deixas o dos pobres
vários;
melhor: não são tão
contagiosos
e são muito menos
numerosos.
— É, deixo o subúrbio dos
indigentes
onde se enterra toda essa
gente
que o rio afoga na preamar
e sufoca na baixa-mar.
— É a gente sem
instituto,
gente de braços
devolutos;
são os que jamais usam
luto
e se enterram sem
salvo-conduto.
— É a gente dos enterros
gratuitos
e dos defuntos
ininterruptos.
— É a gente retirante
que vem do Sertão de
longe.
— Desenrolam todo o
barbante
e chegam aqui na jante.
— E que então, ao chegar,
não têm mais o que
esperar.
— Não podem continuar
pois têm pela frente o
mar.
— Não têm onde trabalhar
e muito menos onde morar.
— E da maneira em que
está
não vão ter onde se enterrar.
— Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos
indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral,
sem razão,
fica vivendo no meio da
lama,
comendo os siris que
apanha;
pois bem: quando sua
morte chega,
temos que enterrá-los em
terra seca.
— Na verdade, seria mais
rápido
e também muito mais
barato
que os sacudissem de
qualquer ponte
dentro do rio e da morte.
— O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de
água;
e também o acompanhamento
que levaria com passo
lento
o defunto ao enterro
final
a ser feito no mar de
sal.
— E não precisava
dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava
inscrição.
— Mas o que se vê não é
isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem
vivia.
— E esse povo lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui
chegando
cemitérios esperando.
— Não é viagem o que
fazem,
vindo por essas
caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu
próprio enterro.
O RETIRANTE APROXIMA-SE
DE UM DOS CAIS DO CAPIBARIBE
— Nunca esperei muita
coisa,
é preciso que eu repita.
Sabia que no rosário
de cidade e de vilas,
e mesmo aqui no Recife
ao acabar minha descida,
não seria diferente
a vida de cada dia:
que sempre pás e enxadas
foices de corte e capina,
ferros de cova,
estrovengas
o meu braço esperariam.
Mas que se este não
mudasse
seu uso de toda vida,
esperei, devo dizer,
que ao menos aumentaria
na quartinha, a água
pouca,
dentro da cuia, a
farinha,
o algodãozinho da camisa,
ao meu aluguel com a
vida.
E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu
fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu
seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na
porta:
o morto ainda está com
vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de
cima,
que me faça aquele
enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de
aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre
desfila
(que o rio, aqui no
Recife,
não seca, vai toda a
vida).
APROXIMA-SE DO RETIRANTE
O MORADOR DE UM DOS MOCAMBOS QUE EXISTEM ENTRE O CAIS E A ÁGUA DO RIO
— Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e
carnal?
— Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos
barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
— Seu José, mestre
carpina,
para cobrir corpo de
homem
não é preciso muito água:
basta que chega ao
abdome,
basta que tenha fundura
igual à de sua fome.
— Severino, retirante,
pois não sei o que lhe
conte;
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do
estômago,
se cruza quando se come.
— Seu José, mestre
carpina,
e quando ponte não há?
quando os vazios da fome
não se tem com que
cruzar?
quando esses rios sem
água
são grandes braços de
mar?
— Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar
largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer
esforço.
— Seu José, mestre
carpina,
e quando é fundo o perau?
quando a força que morreu
nem tem onde se enterrar,
por que ao puxão das
águas
não é melhor se entregar?
— Severino, retirante,
o mar de nossa conversa
precisa ser combatido,
sempre, de qualquer
maneira,
porque senão ele alaga
e devasta a terra
inteira.
— Seu José, mestre
carpina,
e em que nos faz
diferença
que como frieira se
alastre,
ou como rio na cheia,
se acabamos naufragados
num braço do mar miséria?
— Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se
mais.
— Seu José, mestre
carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus
cabedais,
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
— Seu José, mestre
carpina,
que lhe pergunte permita:
há muito no lamaçal
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada à
vista?
— Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de
comprá-la.
— Seu José, mestre
carpina,
e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho
que é cada dia adquirida?
espera poder um dia
comprá-la em grandes
partidas?
— Severino, retirante,
não sei bem o que lhe
diga:
não é que espere comprar
em grosso tais partidas,
mas o que compro a
retalho
é, de qualquer forma,
vida.
— Seu José, mestre
carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
UMA MULHER, DA PORTA DE
ONDE SAIU O HOMEM, ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ
— Compadre José,
compadre,
que na relva estais
deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é
chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso
filho
saltou para dentro da
vida?
Saltou para dento da vida
ao dar o primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabei que ele é
nascido.
APARECEM E SE APROXIMAM
DA CASA DO HOMEM VIZINHOS, AMIGOS, DUAS CIGANAS ETC.
— Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor.
Foi por ele que a maré
esta noite não baixou.
— Foi por ele que a maré
fez parar o seu motor:
a lama ficou coberta
e o mau-cheiro não voou.
— E a alfazema do
sargaço,
ácida, desinfetante,
veio varrer nossas ruas
enviada do mar distante.
— E a língua seca de
esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.
— Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
— Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
— E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
por causa dele, esta
noite,
creio que não irradia.
— E este rio de água
cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de
estrelas.
COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS
TRAZENDO PRESENTES PARA O RECÉM-NASCIDO
— Minha pobreza tal é
que não trago presente
grande:
trago para a mãe
caranguejos
pescados por esses
mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.
— Minha pobreza tal é
que coisa não posso
ofertar:
somente o leite que tenho
para meu filho amamentar;
aqui são todos irmãos,
de leite, de lama, de ar.
— Minha pobreza tal é
que não tenho presente
melhor:
trago papel de jornal
para lhe servir de
cobertor;
cobrindo-se assim de
letras
vai um dia ser doutor.
— Minha pobreza tal é
que não tenho presente
caro:
como não posso trazer
um olho d'água de Lagoa
do Carro,
trago aqui água de
Olinda,
água da bica do Rosário.
— Minha pobreza tal é
que grande coisa não
trago:
trago este canário da
terra
que canta corrido e de
estalo.
— Minha pobreza tal é
que minha oferta não é
rica:
trago daquela bolacha
d'água
que só em Paudalho se
fabrica.
— Minha pobreza tal é
que melhor presente não
tem:
dou este boneco de barro
de Severino de
Tracunhaém.
— Minha pobreza tal é
que pouco tenho o que
dar:
dou da pitu que o pintor
Monteiro
fabricava em Gravatá.
— Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete
de cana.
— Eis ostras chegadas
agora,
apanhadas no cais da
Aurora.
— Eis tamarindos da
Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
— Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
— Peixe pescado no
Passarinho,
carne de boi dos
Peixinhos.
— Siris apanhados no
lamaçal
que há no avesso da rua
Imperial.
— Mangas compradas nos
quintais ricos
do Espinheiro e dos
Aflitos.
— Goiamuns dados pela
gente pobre
da Avenida Sul e da
Avenida Norte.
FALAM AS DUAS CIGANAS QUE
HAVIAM APARECIDO COM OS VIZINHOS
— Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
Vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a caminhar
na lama, como goiamuns,
e a correr o ensinarão
o anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as
galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a
comida;
depois, aprenderá com
outras espécies de
bichos:
com os porcos nos
monturos,
com os cachorros no lixo.
Vejo-o, uns anos mais
tarde,
na ilha do Maruim,
vestido negro de lama,
voltar de pescar siris;
e vejo-o, ainda maior,
pelo imenso lamarão
fazendo dos dedos iscas
para pescar camarão.
— Atenção peço, senhores,
também para minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura.
Outras coisas que estou
vendo
é necessário que eu diga:
não ficará a pescar
de jereré toda a vida.
Minha amiga se esqueceu
de dizer todas as linhas;
não pensem que a vida
dele
há de ser sempre daninha.
Enxergo daqui a planura
que é a vida do homem de
ofício,
bem mais sadia que os
mangues,
tenha embora precipícios.
Não o vejo dentro dos
mangues,
vejo-o dentro de uma
fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a
lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não
pensem
que em sua vida tudo é
triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes
mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.
FALAM OS VIZINHOS,
AMIGOS, PESSOAS QUE VIERAM COM PRESENTES ETC.
— De sua formosura
já venho dizer:
é um menino magro,
de muito peso não é,
mas tem o peso de homem,
de obra de ventre de
mulher.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é uma criança pálida,
é uma criança franzina,
mas tem a marca de homem,
marca de humana oficina.
— Sua formosura
deixai-me que cante:
é um menino guenzo
como todos os desses
mangues,
mas a máquina de homem
já bate nele, incessante.
— Sua formosura
eis aqui descrita:
é uma criança pequena,
enclenque e setemesinha,
mas as mãos que criam
coisas
nas suas já se adivinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é belo como o coqueiro
que vence a areia
marinha.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como o avelós
contra o Agreste de
cinza.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
belo como a palmatória
na caatinga sem saliva.
— De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
— É tão belo como a soca
que o canavial multiplica.
— Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais
saídas.
— Belo como a última onda
que o fim do mar sempre
adia.
— É tão belo como as
ondas
em sua adição infinita.
— Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
— Belo como a coisa nova
na prateleira até então
vazia.
— Como qualquer coisa
nova
inaugurando o seu dia.
— Ou como o caderno novo
quando a gente o
principia.
— E belo porque com o
novo
todo o velho contagia.
— Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
— Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
— Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.
O CARPINA FALA COM O
RETIRANTE QUE ESTEVE DE FORA, SEM TOMAR PARTE EM NADA
— Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa
resposta,
se quer mesmo que lhe
diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela
mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há
pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim
pequena
a explosão, como a
ocorrida;
mesmo quando é uma
explosão
como a de há pouco,
franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
Fonte: http://www.releituras.com/joaocabral_morte.asp
fonte: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/joao-cabral-de-melo-neto/joao-cabral-de-melo-neto-2.php |
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