“Preconceito, nunca.
Temos apenas opiniões bem definidas sobre as coisas. Preconceito é o
outro que tem...
Mas, por
falar nisso, já observou o leitor como temos o fácil hábito de generalizar (e
prova disso é a generalização acima) sobre tudo e todos? Falamos sobre “as
mulheres”, a partir de experiências pessoais; conhecemos “os políticos” após
acompanhar a carreira de dois ou três; sabemos tudo sobre os “militares” porque
o síndico do nosso prédio é um sargento aposentado; discorremos sobre
homossexuais (bando de sem-vergonhas), muçulmanos (gentinha atrasada), sogras
(feliz foi Adão, que não tinha sogra nem caminhão), advogados (todos ladrões),
professores (pobres coitados), palmeirense (palmeirense é aquele que não tem
classe para ser são-paulino nem coragem para ser corintiano), motoristas de
caminhão (todos grossos), peões de obra (ignorantes), sócios do Paulistano
(metidos a besta), dançarinos (veados), enfim, sobre tudo. Mas discorremos de
maneira especial sobre raças e nacionalidades e, por extensão, atributos
inerentes a pessoas nascidas em determinados Estados.
Afinal,
todos sabemos (sabemos?) que os franceses não tomam banho; os mexicanos são
preguiçosos; os suíços, pontuais; os italianos, ruidosos; os judeus,
argentários; os árabes, desonestos; os japoneses, trabalhadores, e por aí
afora. Sabemos também que cariocas são folgados; baianos, festeiros; nordestinos,
miseráveis; mineiros, diplomatas etc. Sabemos ainda que o negro não tem o mesmo
potencial que o branco, a não ser em algumas atividades bem definidas como o
esporte, a música, a dança e algumas outras que exigem mais do corpo e menos da
inteligência. Quando nos deparamos com uma exceção admitimos que alguém possa
ser limpo, apesar de francês; trabalhador, apesar de mexicano; discreto, apesar
de italiano; honesto, apesar de árabe; desprendido do dinheiro, apesar de
judeu; preguiçoso, apesar de japonês e também por aí afora. Mas admitimos com
relutância e em caráter totalmente excepcional.
O mecanismo
funciona mais ou menos assim: estabelecemos uma expectativa de comportamento
coletivo (nacional, regional, racial), mesmo sem conhecermos, pessoalmente, muitos
ou mesmo nenhum membro do grupo sobre o qual pontificamos. Sabemos (sabemos?)
que os mexicanos são preguiçosos porque eles aparecem sempre dormindo embaixo
dos seus enormes chapelões enquanto os diligentes americanos cuidam do gado e
matam bandidos nos faroestes. Para comprovar que os italianos são ruidosos
achamos o bastante frequentar uma cantina no Bexiga. Falamos sobre a
inferioridade do negro a partir da observação empírica de sua condição
socioeconômica. E achamos que as praias
do Rio de Janeiro cheias durante os dias da semana são prova do caráter folgado
do cidadão carioca. Não nos detemos em analisar a questão um pouco mais a
fundo. Não nos interessa estudar o papel que a escravidão teve na formação
histórica de nossos negros. Pouco atentamos para a realidade social do povo
mexicano e de como ele aparece estereotipado no cinema hollywoodiano. Nada
disso. O importante é reproduzir, de forma acrítica e boçal, os preconceitos
que nos são passados por piadinhas, por tradição familiar, pela religião, pela
necessidade de compensar nossa real inferioridade individual por uma pretensa
superioridade coletiva que assumimos ao carimbar “o outro” com a marca de
qualquer inferioridade.
Temos pesos,
medidas e até um vocabulário diferente para nos referirmos ao “nosso” e ao do
“outro”, numa atitude que, mais do que autocondescendência, não passa de
preconceito puro. Por exemplo, a nossa é religião, a do outro é seita; nós
temos fervor religioso, eles são fanáticos; nós acreditamos na lei de Deus (o
nosso sempre em maiúscula), eles são fundamentalistas; nós temos hábitos, eles
vícios; nós cometemos excessos compreensíveis, eles são um caso perdido;
jogamos muito melhor, o adversário tem é sorte; e finalmente, não temos
preconceito, apenas uma opinião formada sobre as coisas.
Ou
deveríamos ser como esses intelectuais que para afirmar qualquer coisa acham
necessário estudar e observar atentamente? Observar, estudar e agir respeitando
as diferenças é o que se espera de cidadãos que acreditam na democracia e, de
fato, lutam por um mundo mais justo. De nada adianta praticar nossa indignação
moral diante da televisão, protestando contra limpezas raciais e discriminações
pelo mundo afora, se não ficarmos atentos ao preconceito nosso de cada dia. “
PINSKY,
Jaime. O preconceito nosso de cada dia.
O Estado de São Paulo. São Paulo, 20/05/93.
Nenhum comentário:
Postar um comentário