"O homem é um animal racional, embora não pareça. Não
há criança que, na escola, não tenha achado graça ao aprender isto,
divertindo-se com os colegas: seu pai é um animal, dizem uns para os outros.
Mas a
criança é o pai do homem, se me permitem este lugar-comum que Wordsworth 1inventou.
Antes de se saber animal e filho de animal, já sabe usar a razão que Deus lhe deu, segundo a qual
as palavras têm um significado concreto e definido, que pode ser colhido nos
dicionários, servindo para designar exatamente aquilo para o qual foram
criadas. Em consequência, os mistérios da linguagem figurada escapam de muito à
tão apregoada imaginação infantil.
Para
as crianças, nada existe senão ao pé da letra
- e não duvido que, diante dessa expressão, pensassem logo numa letra
com pés, dedos, unhas e sapatos. Ir num pé e voltar noutro, por exemplo, para o
menino que eu fui, era uma façanha tão difícil como sair pela rua pulando numa
perna só, depressa para atender a urgência contida na ordem de minha mãe.
Assim
também, meu pai mandar que o empregado desse um pulo na cidade me parecia uma
ordem extravagante, como ordenar que o pobre homem fosse até o centro da
cidade, juntasse as pernas, desse um pulo no ar diante dos transeuntes e
voltasse para casa. Nunca me conformei com a ideia de virar um palite se
comesse pouco ao jantar, de virar uma bola se comesse muito e, em ambas as
hipóteses. Ficar de cara amarrada, porque não queira obedecer. Amarrar a cara
evidentemente só seria possível com o auxílio de cordas, e se nela houvesse um
só pingo de vergonha, ela me escorreria pelo como uma lágrima até pingar no
chão.
[...]
Começava
a penetrar os mistérios da linguagem figurada e ia ingressando, submisso, no
mundo convencional que me deixavam como herança. Ideias que só se impõem pelo
fato de serem repetidas; hábitos que se formam pelo fato de serem impostos;
palavras cuja significação original há muito se perdeu e que são usadas como
rebanhos pacíficos. Gestos de valor convencionado como o das moedas, para o
comércio da convivência.
Um
dia descobriria com espanto uma simples verdade, como o céu é azul, o oceano
imenso, a noite é bela. E o céu passava a ser azul só para mim, o oceano era
imenso porque eu o queria assim, a noite era mais bela que o dia porque era só
minha, de mais ninguém. As ideias herdadas iam sendo reaprendidas, iam sendo
desenterradas do lugar-comum como numa recriação. Era o que eu precisava para
me tornar um escritor.
Escrever bem não é repetir o que já foi bem escrito: é
revalorizar os meios de expressão, juntar ou separar palavras para fazê-las reagir, servir-se do
que já foi dito para dizer pela primeira vez".
SABINO, Fernando. Lugares-comuns. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Record, 1984. p. 33-6
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