“Nunca pude entender a conversação que tive com uma
senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal.
Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir;
combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
fonte fotografia: http://www.literaturaemfoco.com/wp-content/uploads/2011/12/curta_04_missa.jpg |
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão
Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A
segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de
Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia
tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do Senado, com os meus livros,
poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher,
a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente
estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e
mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me
levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam
à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte.
Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses
trazia amores com uma senhora, separada
do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio,
com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou
achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e
fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em
verdade, era um temperamento moderado,
sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que
trato,dava para maometana; aceitaria um harém,
com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era
atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não
dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse
amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era
pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias, mais
fiquei até o Natal para ver "a
missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume, eu
meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da
entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com
o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
— Mas, Sr.
Nogueira, que fará você todo esse tempo? Perguntou-me a mãe de Conceição.
— Leio, D.
Inácia.
Tinha comigo um romance, Os Três Mosqueteiros, velha
tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da
sala, e, à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda
uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente
ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando
são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso.
Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram
uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça;
logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de D. Conceição.
— Ainda não foi?
Perguntou ela.
— Não fui;
parece que ainda não é meia-noite.
— Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica,
não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se
na cadeira que ficava defronte de mim, perto do
canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo
barulho, respondeu com presteza:
— Não! Qual!
Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não
eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono.
Essa observação, porém, que valeria alguma cousa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir
que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não
afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
— Mas a hora já
há de estar próxima, disse eu.
— Que paciência
a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem
medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
— Quando ouvi os
passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
— Que é que
estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
— Justamente: é
muito bonito.
— Gosta de
romances?
— Gosto.
— Já leu A
Moreninha?
— Do Dr. Macedo?
Tenho lá em Mangaratiba.
— Eu gosto muito
de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem
lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça
reclinada no espaldar, enfiando os olhos por
entre as pálpebras meio cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando
passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me
disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, via-a endireitar a
cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos
braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos. "Talvez
esteja aborrecida", pensei eu. E logo alto:
— D. Conceição,
creio que vão sendo horas, e eu...
— Não, não,
ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você,
perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
— Já tenho feito
isso.
— Eu, não;
perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja,
hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
— Que velha o
que, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De
costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém,
ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos,
entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho
honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei
que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me
pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou concertando a posição
de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio.
Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver espertar
acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo
na Corte, e não queria perdê-la.
— É a mesma
missa da roça; todas as missas se parecem.
— Acredito; mas
aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é
mais bonita que na roça. S. João não
digo, nem Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se reclinado; fincara os cotovelos
no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando
abotoadas as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muito
claros, e menos magros do que se poderia supor. A vista não era nova para mim,
posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi
grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las
do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro.
Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras
cousas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por que, variando deles
ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que
luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas
escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar
interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ele reprimia-me:
— Mais baixo!
Mamãe pode acordar.
E
não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão
perto ficavam as nossas caras.
Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dous,
eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria,
com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu
volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto,
o bico das chinelas; Mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão
era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse
baixinho:
— Mamãe está
longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não
pegava no sono.
— Eu também sou
assim.
— O que?
Perguntou ela inclinando o corpo, para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e
repeti-lhe a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve;
éramos três sonos leves. — Há ocasiões
em que sou como mamãe; acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à
toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me e nada.
— Foi o que lhe
aconteceu hoje.
— Não, não,
atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a
entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque
acabava de cruzar as pernas. Depois
referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo,
em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim
lentamente, longamente, sem que eu desse
pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma
narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra
matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
— Mais baixo,
mais baixo...
Havia, também, umas pausas. Duas outras vezes,
pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga,
como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu
por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se
apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me parecem truncadas
ou confusas. Contradigo-me,
atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião,
ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé,
os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantarme; não consentiu, pôs
uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me
a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma cousa; mas estremeceu, como se
tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde
me achara lendo.Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do
canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.
— Estes quadros
estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um
representava "Cleópatra"; não
me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos;
naquele tempo não me pareciam feios.
— São bonitos,
disse eu.
— Bonitos são;
mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas
santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
— De barbeiro? A
senhora nunca foi a casa de barbeiro.
— Mas imagino
que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o
dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que
não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita cousa assim esquisita.
Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição,
minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede,
nem eu quero. Está no meu oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me
que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo
a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza
que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava de
suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns
casos de passeio,reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem
interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa,
das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não
eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma
atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as
paredes.
— Precisamos
mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma cousa, para sair da
espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os
sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar
os olhos dela, e arredavaos por um sentimento de respeito; mas a idéia de
parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo.
Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, — não posso dizer
quanto, — inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de
camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis
falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando.
Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que
bradava: "Missa do galo! Missa do galo"!
— Aí está o
companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você ficou de
ir acordá-lo,
ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
— Já serão
horas? Perguntei.
— Naturalmente.
— Missa do galo!
— repetiram de fora, batendo.
— Vá, vá, não se
faça esperar. A culpa foi minha. Adeus, até amanhã.
E
com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo
corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava.
Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se,
mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete
anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade
de Conceição. Durante o dia, achei-a
como sempre, natural, benigna, em nada que fizesse lembrar a conversação da
véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em
março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo,
mas nem, a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente
juramentado do marido.”
Machado de Assis
ASSIS, Machado de. Seus trintas melhores contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 19??
Nenhum comentário:
Postar um comentário