terça-feira, 31 de janeiro de 2012

um pouco de HELENA KOLODY




Acho intrigante essa questão de lutar com as palavras... Veja só como Kolody luta tão bem com tão poucas palavras e tantos significados...
 

  • "Haikai não é síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo de palavras. É antes a arte de, com o mínimo, obter o suficiente".
- Paulo Franchetti


 
  • "[...] poesia mínima de quem sabe dominar a pequenez dos versos para descrever a grandeza do infinito; e pelo andante de quem percorre caminhos estreitos sem nunca perder a largueza da paisagem."
 
(Celso Nascimento in: Sinfonia da vida. Intodução. )


 

 
ÂMAGO
 

 
 
 
Quem bebe da fonte
 
Que jorra na encosta,
 
Não sabe do rio
 
Que a montanha guarda.
 
 
(Helena Kolody)
 
 

 
 
 
 
Quando sonho, sou outra
 
Inauguro-me.
 
 
(Helena Kolody)
 
 

 
 
 

 
 
 
“DOM”
 
Deus dá a todos uma estrela.
 
Uns fazem da estrela um sol.
 
Outros nem conseguem vê-la.
 
 
(Helena Kolody)
 
 

 
 
 

 
 
QUEIXA
 
Tu, Senhor, que repartes os destinos:
 
Por que me deste o árido quinhão
 
De sonho, de tristeza e solidão?
 
 
(Helena Kolody)
 
 

 

 
 

 
 
 
JOVEM

 
 

 
 
 
Suporta o peso do mundo.
 
E resiste.
 

 
 
 
Protesta na praça.
 
Contesta.
 
Explode em aplausos.
 

 
 
 
Escreve recados
 
Nos muros do tempo.
 
E assina.
 

 
 
 
Compete
 
No jogo incerto da vida.
 
Existe.
 
 

 
 
 
(Helena Kolody)
 
 


 



PRECE
 
 
Concede-me, Senhor, a graça de ser boa,
 
De ser o coração singelo que perdoa,
 
A solícita mão que espalha, sem medidas,
 
Estrelas pela noite escura de outras vidas
 
E tira d'alma alheia o espinho que magoa.

 
 

 
 
(KOLODY, Helena. Sinfonia da vida. Curitiba: Polo Editorial do Paraná. 1997)

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

SILÊNCIO!!!

"Gosto de ouvir a voz do silêncio

do silêncio profundo

que me afasta da lida
e separa do mundo"

arquivo smms

desconheço a autoria. Se alguém souber, por favor...


domingo, 22 de janeiro de 2012

"FICA, SENHOR, COMIGO" por Gioia Junior



"Fica, Senhor, comigo; a noite é vasta e fria.

Segura a minha mão, até que chegue o dia.

Em Tua companhia é claro o meu caminho

e eu não quero ficar para sempre sozinho.

Não fosse o Teu cuidado, e eu, por certo, estaria

abatido e infeliz, numa senda de espinho.



Fica, Senhor, comigo; o coração da gente


- arquivo smms
é fraco e pequenino e bate fortemente

ao ruído menor dos prenúncios fatais,

de procelas cruéis e rudes temporais...

Dá que eu possa sentir, Senhor, eternamente,

amparando meu ser, Teus braços paternais.


Fica, Senhor, comigo; a mocidade passa

como a leve espiral escura de fumaça

e a solidão do velho é triste e sem alento


arquivo smms
e plena de incerteza e mau pressentimento.

A Teu lado eu terei consolo na desgraça,

conforto na miséria e paz no sofrimento.


Fica, Senhor, comigo; os meus olhos sem luz

querem também Te ver na Estrada de Emaús

da minha vida, pois só Tu és meu abrigo,

meu amigo melhor, meu verdadeiro amigo.

Por isso é que Te peço, ó bendito Jesus,

eu não quero estar só. Fica, Senhor, comigo!"


Gioia Junior

\arquivo smms


terça-feira, 17 de janeiro de 2012

RECEITA DE ANO NOVO por Carlos Drummond de Andrade








Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)


para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,

se ama, se compreende, se trabalha,
Arquivo: smms



você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?

passa telegramas?).


Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.



Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.

 






É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Arquivo: smms



domingo, 15 de janeiro de 2012

"O CASAMENTO DA EMÍLIA" por Monteiro Lobato






O casamento da Emília

                de como Emília e Rabicó se casam e ficam separados para sempre



Durou uma semana o noivado de Emília. Todas as tardes, trazido à força por Pedrinho, aparecia o Marquês de Rabicó para visitar a noiva, e tinha de ficar meia hora na sala, contando casos e dizendo palavras de amor.



Mas apesar de noivo o Rabicó não perdia os seus instintos. Logo que entrava punha-se a farejar a sala, na sua eterna preocupação de descobrir o que comer. Além disso, não prestava a menor atenção à conversa. Não havia nascido para aquelas cerimônias.



Uma tarde, Pedrinho zangou-se e resolveu substituí-lo por um representante.

- Rabicó não vale a pena – disse ele aborrecido. – Não sabe brincar, não se comporta.  O melhor é isto, querem ver? – e saiu.


Foi ao quintal e trouxe um vidro vazio de óleo de rícino que andava jogado por lá.


-  Esta aqui. De agora em diante o noivo será representado por este vidro azul, e o tal Marquês de Rabicó vai passear – concluiu pregando um pontapé no noivo.

Rabicó raspou-se gemendo três coins , e desde esse dia, enquanto fossava a terra no pomar atrás da tal minhoca de anel na barriga, quem noivava por ele, de cartola na cabeça, era o senhor Vidro Azul.


Emília comportava-se muito bem embora de vez em quando viesse com impertinências.


- Eu já disse a Narizinho: caso, mas com uma condição.


- Eu sei qual é! – adivinhou o senhor Vidro Azul. – Não quer morar na casa do Marquês, com certeza porque não se dá bem com o futuro sogro, os Visconde de Sabugosa.


- Isso não! Até gosto muito do senhor Visconde. O que não quero é sair daqui. Estou muito acostumada.

- O senhor Vidro Azul coçou o gargalo.


- Sim, mas...


- Não  tem mas, nem meio mas! Quem manda neste casamento sou eu. O Marquês fica por lá e eu fico por cá – declarou Emília, toda espevitadinha e de nariz torcido.


O representante do noivo suspirou.

- Que pena! O Senhor Marquês já mandou construir um castelo tão bonito, de ouro e marfim, com um grande lago na frente...


Emília deu uma risada.


- Eu conheço os lagos do Marquês! São como aquele célebre “lago azul” que certa vez prometeu à Libelinha lá do Reino das Abelhas.


O senhor Vidro Azul atrapalhou-se. Viu que


Emília não era nada tola e não se deixava enganar facilmente. Procurou remendar.


- Sim, um lago. Não digo um grande lago, mas um pequeno lago, um tanque...


- Uma lata d’água, diga logo! – completou  Emília mordendo os beiços.


Narizinho interveio, repreensiva.

- Você esta aqui para noivar, Emília, para dizer coisas bonitas e amáveis, e não para brigar com o representante do Marquês. Veja lá, hein?


E dirigindo ao representante:


- O Senhor Marquês não escreveu ainda uns versos para a sua amada noivinha?


- Escreveu, sim – respondeu o Vidro Azul, metendo a mão no gargalo e sacando um papelzinho. – Aqui estão eles.


E recitou:





Pirulito que bate bate,

Pirulito que já bateu,

Quem adora o Marquês é ela.

Quem adora Emília sou eu.


- Bravos! – exclamou Narizinho batendo palmas. – São lindos esses versos! O Marquês é um grande poeta!...


Emília, porém, torceu o nariz e até ficou meio danadinha.

- O verso esta todo errado! Vou casar-me com Rabicó mas não “adoro” coisa nenhuma. Tinha graça eu “adorar” um leitão!


Narizinho bateu o pé e franziu a testa.


- Emília, tenha modos! Não é assim que se trata um poeta. Você vai ser marquesa, vai viver em salões e precisa saber fingir, ouviu?


Depois, voltando-se para o representante:


- Peço-lhe mil desculpas, senhor Vidro Azul! Emília tem a mania de ser franca. Nunca viveu em sociedade e ainda não sabe mentir. Não é aqui como o nosso Visconde de Sabugosa, que fala, fala e ninguém sabe nunca o que ele realmente esta pensando, não é verdade?


O Visconde fez um gesto que tanto podia ser sim como não.


Desse modo conversavam todas as noites, longo tempo, até que vinha o chá. Chá de mentira com torradas de mentira. Depois do chá, se despediam.


Passada uma semana, a menina queixou-se a Dona Benta:


- Este noivado esta me acabando com a vida, vovó.  Todas as noites, tenho de fazer sala para os noivos. Como isto cansa!...


- Mas que é que esta faltando para o casamento, menina?


- Os doces, vovó...


- Já sei. Já sei. Pois tome lá estes níqueis e mande vir os doces.


Como era justamente aquilo que Narizinho queria, lá se foi aos pinotes, com os níqueis cantando na mão.


Chegou afinal o grande dia e vieram os grandes doces: seis cocadas,  seis pé-de-moleque e uma rapadura, doce mais que suficiente para uma festa em quase todos os convidados ia comer de mentira.


Pedrinho armou a mesa da festa debaixo de uma laranjeira do pomar e botou em redor todos os convivas.


Lá estavam Dona Benta, Tia Nastácia e vários conhecidos e parentes, todos representados por pedras, tijolos e pedaços de pau.  O inspetor de quarteirão, um velho amigo de Dona Benta que às vezes aparecia pelo Sítio do Picapau Amarelo, era figurado por um toco de pau com uma dentadura de casca de laranja na boca.


Chegou a hora. Vieram vindo os noivos. Emília, de vestido branco e véu; Rabicó, de cartola e faixa de seda em torno do pescoço. Vinha muito sério, mas assim que se aproximou da mesa e sentiu o cheiro das cocadas, ficou de água na boca, assanhadíssimo. Não viu mais nada.


Logo depois veio o padre e casou-os. Narizinho abraçou Emília e chorou lágrima de verdade, dando-lhe muitos conselhos. Depois, como a boneca não tivesse dedos, enfiou-lhe no braço um anelzinho seu. Pedrinho fez o mesmo com o Marquês; enfiou-lhe no braço uma aliança de laranja, que Rabicó por duas vezes tentou comer.


Os outros animais do Sítio, as cabras, as galinhas e os porcos, também assistiram à festa, mas de longe. Olhavam, olhavam, sem compreenderem coisa nenhuma.


Terminada a festa. Narizinho disse:


- E agora, Pedrinho?


- Agora – respondeu ele – só falta a viagem de núpcias.


Mas a menina estava cansada e não concordou. Propôs outra coisa. Puseram-se a discutir e esqueceram de tomar conta da mesa de doces. Rabicó aproveitou a ocasião. Foi se chegando para perto das cocadas e de repente  - nhoc! Deu um bote na mais bonita.


- Acuda os doces, Pedrinho! – berrou a menina.

Pedrinho virou-se e, vendo a feia ação do pirata, correu para cima dele, furioso. Agarrou o inspetor de quarteirão e arrumou uma valente inspetorada no lombo do porquinho...


- Cachorro! Ladrão! Marquês duma figa!...


Rabicó deu um berro espremido e disparou pelo campo, mas sem largar a cocada.


Como era de prever, não podia dar bom resultado aquele casamento. O gênios não se combinavam e, além disso, a boneca não podia consolar-se do logro que levara.


Narizinho ainda tentou convencê-la de que Rabicó era realmente príncipe e Pedrinho só dissera aquilo porque estava danado. Não houve meio. Quando Emília desconfiava, era toda a vida.  E desse modo ficou casada com Rabicó, mas dele separada para sempre.


- Esta aí o que você fez! – costumava dizer em voz queixosa. – Casou-me com um príncipe de mentira e agora, esta aí, esta aí...


Narizinho dava-lhe esperanças.




- Tudo se arruma. Um dia, ele morre e eu caso você com o Visconde ou outro qualquer.


 
Edição de texto: Zezé Gonçalves
Ilustrações: Moacir Rodrigues
Capa: Moema Cavalcanti



segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

"BIRUTA" por Lygia Fagundes Telles

   "Biruta" é um conto de Lygia Fagundes Telles e trata-se da história do menino Alonso e o seu caozinho Biruta.


 Biruta era o único companheiro  e verdadeiro  amigo  de Alonso... 


Podemos encontrar esse conto, entre outros, no livro



Editora Ática

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Vamos ao conto???




Alonso foi para o quintal carregando uma bacia cheia de louça suja, andava com dificuldade, tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.



— Biruta, eh, Biruta! — chamou sem se voltar.



O cachorro saiu de dentro da garagem. Era pequenino e branco, uma orelha em pé e a outra completamente caída.



— Sente-se aí, Biruta, que vamos ter uma conversinha — disse Alonso pousando a bacia ao lado do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os pratos.



Biruta sentou-se muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora para a esquerda, como se quisesse apreender melhor as palavras do seu dono. A orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra empinou, aguda e reta. Entre elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida no esforço da meditação.



— Leduína disse que você entrou no quarto dela — começou o menino num tom brando. — E subiu em cima da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira nova. Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora o que é que ia acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina, lembra? Você se lembra muito bem. Sim senhor, não precisa fazer essa cara de inocente!...



Biruta deitou-se, enfiou o focinho entre as patas e baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar interrogativo parecia perguntar: “Mas que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro de nada...”



— Lembra sim senhor! E não adianta ficar ai com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu, Biruta?! — repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos. Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha mãos de velho.



— Alonso, anda ligeiro com essa louça! — gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da cozinha. — Já está escurecendo, tenho que sair!



— Já vou indo — respondeu o menino enquanto removia a água da bacia. Voltou-se para o cachorro. E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se emendava, por quê? Por que não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona Zulu já andava impaciente, Leduína também, Biruta fez isso, Biruta fez aquilo...



Lembrou-se do dia em que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis, “Alonso, você não viu onde deixei a carne?” Ele estremeceu. Biruta! Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro num velho colchão metido num ângulo da parede. Biruta estava lá, deitado bem em cima do travesseiro com a posta de carne entre as patas, comendo tranqüilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava fechado, “que é que eu faço, dona Zulu?!”

Ambas estavam na sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e entrou com a posta na mão.



— Está aqui, Leduína.



— Mas falta um pedaço!



— Esse pedaço eu tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você foi na quitanda.



— Mas por que você escondeu o resto? — perguntou a patroa, aproximando-se.



— Porque fiquei com medo.



Tinha bem viva na memória a dor que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os cabelos, batendo, batendo como se não pudesse parar nunca mais.



— Atrevido! Ainda te devolvo pro asilo, seu ladrãozinho!



Quando ele voltou à garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas, piscando, piscando os olhinhos ternos. “Biruta, Biruta, apanhei por sua causa, mas não faz mal. Não faz mal.”



Biruta então ganiu sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos. Isso tinha acontecido há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a carteira de dona Zulu?



— Hem, Biruta?! E se fosse a carteira de dona Zulu?



Já desinteressado, Biruta mascava uma folha seca.



— Por que você não arrebenta minhas coisas? — prosseguiu o menino elevando a voz. — Você sabe que tem todas as minhas coisas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente de Natal, está acabado. Você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!..

         Girou sobre os calcanhares, dando as costas ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.



Alonso então sorriu. Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de crianças? Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. “Por que dona Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem comigo nem com você, é como se a gente não existisse. Leduína tem aquele jeitão dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que nem uma criancinha. Ah, Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé! Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!’’



— Alonso! — era a voz de Leduína. — Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase noite, menino.



— Chega de dormir, seu vagabundo! — disse Alonso espargindo água no focinho do cachorro.



Biruta abriu os olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num longo espreguiçamento.



O menino equilibrou penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.



— Aproveita, seu bandidinho! — riu-se Alonso. — Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!



Assim que colocou a bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se, latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.



— Ai, Leduína, que o Biruta judiou de mim.



A empregada pôs-se a guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas:



— Olha aí para o seu jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.



— Mas só eu vou jantar? — surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.

— Hoje é dia de Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai jantar sozinho.



Alonso inclinou-se. E espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olinhos brilharam no escuro: Biruta ainda estava lá. Alonso suspirou. Era tão bom quando Biruta resolvia se sentar! Melhor ainda quando dormia, tinha então a certeza de que não estava acontecendo nada. A trégua. Voltou-se para Leduína.



— O que o seu filho vai ganhar?



— Um cavalinho — disse a mulher. A voz suavizou — Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentando que queria um cavalinho, que queria um cavalinho...



Alonso pegou urna batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.



— Lá no asilo, no Natal, apareciam umas moças com uns saquinhos de balas e roupas. Tinha uma que já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um dia, me deu sapatos , um casaquinho de malha e uma camisa.



— Por que ela não ficou com você?



— Ela disse uma vez que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...



Deixou cair na caçarola a batala já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno da vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas “a madrinha”. Inutilmente a procurava entre as moças que apareciam no fim do ano com os pacotes de presentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim da festa, quando entáo se reunia aos meninos na capela. Ah, se ela pudesse ouvi-lo

“O bom Jesus é quem nos traz

A mensagem de amor e alegria’’...



— Também é muita responsabilidade tirar criança pra criar! — disse Leduína desamarrando o avental. — Já chega os que a gente tem.



Alonso baixou o olhar. E de repente, sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo.



— Êh, Biruta! Está com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!.. Sabe Leduína, Biruta também vai ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma beleza de bola! Agora ele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nada, sabe, Leduína?



— Hoje cedo ele não esteve no quarto de dona Zulu?



O menino empalideceu.



— Só se foi na hora que fui lavar o automóvel... Por que, Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?



Ela hesitou. E encolheu os ombros.



— Nada, Perguntei à toa.



A porta abriu-se bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia da mulher. Mas ela eslava sorridente. O menino sorriu também.



— Ainda não foi pra sua festa, Leduína? — perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do vestido de renda. — Pensei que você já tivesse saído... — E antes que a empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: — Então? Preparando seu jantarzinho?


O menino baixou a cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não sabia o que dizer.



— O Biruta está limpo, não está? — prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se debaixo do fogão.



Alonso tentou encobrir-lhe a fuga:

— Biruta, Biruta! Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... — voltou-se para a patroa. E sorriu desculpando-se: — Até de mim ele se esconde.



A mulher pousou a mão no ombro do menino:



— Vou numa festa onde tem um menininho assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não empresta? O automóvel já está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.



O rosto do menino resplandeceu. Mas então era isso?!... Dona Zulu pedindo o Biruta emprestado, precisando do Biruta! Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava limpinho e que ficaria contente de emprestá-lo ao menino doente. Mas sem dar- lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.



— Viu Biruta? Você vai numa festa! — exclamou. — Numa festa com crianças, com doces, com tudo! Numa festa, seu sem-vergonha! — repetiu, beijando o focinho do cachorro. — Mas, pelo amor de Deus, tenha juízo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu sapato... — acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do cachorro. Apertou-lhe a pata — Te espero acordado, Biruta... Mas não demore muito!



O patrão já estava na direção do carro. Alonso aproximou-se.



— O Biruta, doutor.



O homem voltou-se ligeiramente. Baixou os olhos.



— Está bem, está bem. Deixe ele aí atrás.



Alonso ainda beijou o focinho do cachorro. Em seguida, fez-lhe uma última carícia, colocou-o no assento do automóvel e afastou-se correndo.



— Biruta vai adorar a festa! — exclamou assim que entrou na cozinha. — E lá tem doces, tem crianças, ele não quer outra coisa coisa! — Fez uma pausa. Sentou-se — Hoje tem festa em toda parte, não, Leduína?



A mulher já se preparava para sair.

— Decerto.



Alonso pôs-se a mastigar pensativamente.



— Foi hoje que Nossa Senhora fugiu no burrinho?



— Não, menino, Foi hoje que Jesus nasceu. Depois então é que aquele rei manda prender os três.



Alonso concentrou-se.



— Sabe, Leduína, se algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois — riu-se metendo uma batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruído do carro que já saía. — Dona Zulu estava linda, não?



— Estava.



— E tão boazinha. Você não achou que hoje ela estava boazinha?



— Estava, estava muito boazinha.



— Por que você está rindo?



— Nada — respondeu ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta, Mas antes, parecia querer dizer qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.

Alonso observou-a, e julgou adivinhar o que a preocupava.



— Sabe, Leduína, você não precisa dizer pra dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com ele, já surrei ele. Não vai fazer mais isso nunca, eu prometo que não.



A mulher voltou-se para o menino. Pela primeira vez, encarou-o. Vacilou ainda um instante. Decidiu -se:



— Olha aqui, se eles gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu pra você, Biruta não vai mais voltar.



— Não vai o quê? — perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o pedaço de batata que ainda tinha na boca. Levantou-se. — Não vai o quê, Leduína?



— Não vai mais voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha, enquanto você lavava a louça, escutei a conversa dela com o doutor que não queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais isso, e mais aquilo... O doutor pediu pra ela esperar, que amanhã dava um jeito, você ia sentir muito, hoje era natal... Não adiantou. Vão soltar o cachorro bem longe daqui e depois seguem pra festa. Amanhã ela vinha dizer que o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já o Biruta irão vai voltar.



Alonso fixou na mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca. A voz era unisopro.



— Não?...



Ela perturbou-se.



— Que gente também! — explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino — Não se importe, não, filho. Vai, vai jantar.



Ele deixou cair os braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo para o quintal. Dirigiu-se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz fria do luar chegava até a borda do colchão desmantelado.



Alonso cravou os olhos brilhantes num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do lençol. Ajoelhou-se. Estendeu a mão tateante. Tirou de baixo do travesseiro uma bola de borracha.



— Biruta — chamou baixinho. — Biruta... — E desta vez só os lábios e moveram e não saiu som.



Muito tempo ele ficou ali ajoelhado, segurando a bola. Depois, apertou-a fortemente contra o coração.