"Biruta" é um conto de Lygia Fagundes Telles e trata-se da história do menino Alonso e o seu caozinho Biruta.
Biruta era o único companheiro e verdadeiro amigo de Alonso...
Podemos encontrar esse conto, entre outros, no livro
Editora Ática
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Vamos ao conto???
Alonso foi para o
quintal carregando uma bacia cheia de louça suja, andava com dificuldade,
tentando equilibrar a bacia que era demasiado pesada para seus bracinhos finos.
— Biruta, eh, Biruta!
— chamou sem se voltar.
O cachorro saiu de
dentro da garagem. Era pequenino e branco, uma orelha em pé e a outra
completamente caída.
— Sente-se aí,
Biruta, que vamos ter uma conversinha — disse Alonso pousando a bacia ao lado
do tanque. Ajoelhou-se, arregaçou as mangas da camisa e começou a lavar os
pratos.
Biruta sentou-se
muito atento, inclinando interrogativamente a cabeça ora para a direita, ora
para a esquerda, como se quisesse apreender melhor as palavras do seu dono. A
orelha caída ergueu-se um pouco, enquanto a outra empinou, aguda e reta. Entre
elas, formaram-se dois vincos, próprios de uma testa franzida no esforço da
meditação.
— Leduína disse que
você entrou no quarto dela — começou o menino num tom brando. — E subiu em cima
da cama e focinhou as cobertas e mordeu uma carteirinha de couro que ela deixou
lá. A carteira era meio velha e ela não ligou muito. Mas se fosse uma carteira
nova. Biruta! Se fosse uma carteira nova! Me diga agora o que é que ia
acontecer se ela fosse uma carteira nova!? Leduína te dava uma surra e eu não
podia fazer nada, como daquela outra vez que você arrebentou a franja da cortina,
lembra? Você se lembra muito bem. Sim senhor, não precisa fazer essa cara de
inocente!...
Biruta deitou-se,
enfiou o focinho entre as patas e baixou a orelha. Agora, ambas as orelhas
estavam no mesmo nível, murchas, as pontas quase tocando o chão. Seu olhar
interrogativo parecia perguntar: “Mas que foi que eu fiz, Alonso? Não me lembro
de nada...”
— Lembra sim senhor!
E não adianta ficar ai com essa cara de doente, que não acredito, ouviu? Ouviu,
Biruta?! — repetiu Alonso lavando furiosamente os pratos. Com um gesto
irritado, arregaçou as mangas que já escorregavam sobre os pulsos finos.
Sacudiu as mãos cheias de espuma. Tinha mãos de velho.
— Alonso, anda ligeiro
com essa louça! — gritou Leduína, aparecendo por um momento na janela da
cozinha. — Já está escurecendo, tenho que sair!
— Já vou indo —
respondeu o menino enquanto removia a água da bacia. Voltou-se para o cachorro.
E seu rostinho pálido se confrangeu de tristeza. Por que Biruta não se
emendava, por quê? Por que não se esforçava um pouco para ser melhorzinho? Dona
Zulu já andava impaciente, Leduína também, Biruta fez isso, Biruta fez
aquilo...
Lembrou-se do dia em
que o cachorro entrou na geladeira e tirou de lá a carne. Leduína ficou
desesperada, vinham visitas para o jantar, precisava encher os pastéis,
“Alonso, você não viu onde deixei a carne?” Ele estremeceu. Biruta!
Disfarçadamente, foi à garagem no fundo do quintal, onde dormia com o cachorro
num velho colchão metido num ângulo da parede. Biruta estava lá, deitado bem em
cima do travesseiro com a posta de carne entre as patas, comendo
tranqüilamente. Alonso arrancou-lhe a carne, escondeu-a dentro da camisa e voltou
à cozinha. Deteve-se na porta ao ouvir Leduína queixar-se à dona Zulu que a
carne desaparecera, aproximava-se a hora do jantar e o açougue já estava
fechado, “que é que eu faço, dona Zulu?!”
Ambas estavam na
sala. Podia entrever a patroa a escovar freneticamente os cabelos. Ele então tirou
a carne de dentro da camisa, ajeitou o papel já todo roto que a envolvia e
entrou com a posta na mão.
— Está aqui, Leduína.
— Mas falta um
pedaço!
— Esse pedaço eu
tirei pra mim. Eu estava com vontade de comer um bife e aproveitei quando você
foi na quitanda.
— Mas por que você
escondeu o resto? — perguntou a patroa, aproximando-se.
— Porque fiquei com
medo.
Tinha bem viva na
memória a dor que sentira nas mãos corajosamente abertas para os golpes da
escova. Lágrimas saltaram-lhe dos olhos. Os dedos foram ficando roxos, mas ela
continuava batendo com aquele mesmo vigor obstinado com que escovara os
cabelos, batendo, batendo como se não pudesse parar nunca mais.
— Atrevido! Ainda te
devolvo pro asilo, seu ladrãozinho!
Quando ele voltou à
garagem, Biruta já estava lá, as duas orelhas caídas, o focinho entre as patas,
piscando, piscando os olhinhos ternos. “Biruta, Biruta, apanhei por sua causa,
mas não faz mal. Não faz mal.”
Biruta então ganiu
sentidamente. Lambeu-lhe as lágrimas. Lambeu-lhe as mãos. Isso tinha acontecido
há duas semanas. E agora Biruta mordera a carteirinha de Leduína. E se fosse a
carteira de dona Zulu?
— Hem, Biruta?! E se
fosse a carteira de dona Zulu?
Já desinteressado,
Biruta mascava uma folha seca.
— Por que você não
arrebenta minhas coisas? — prosseguiu o menino elevando a voz. — Você sabe que
tem todas as minhas coisas pra morder, não sabe? Pois agora não te dou presente
de Natal, está acabado. Você vai ver se ganha alguma coisa. Você vai ver!..
Girou sobre os calcanhares, dando as costas
ao cachorro. Resmungou ainda enquanto empilhava a louça na bacia. Em seguida
calou-se, esperando qualquer reação por parte do cachorro. Como a reação
tardasse, lançou-lhe um olhar furtivo. Biruta dormia profundamente.
Alonso então sorriu.
Biruta era como uma criança. Por que não entendiam isso? Não fazia nada por
mal, queria só brincar... Por que dona Zulu tinha tanta raiva dele? Ele só
queria brincar, como as crianças. Por que dona Zulu tinha tanta raiva de
crianças? Uma expressão desolada amarfanhou o rostinho do menino. “Por que dona
Zulu tem que ser assim? O doutor é bom, quer dizer, nunca se importou nem
comigo nem com você, é como se a gente não existisse. Leduína tem aquele jeitão
dela, mas duas vezes já me protegeu. Só dona Zulu não entende que você é que
nem uma criancinha. Ah, Biruta, Biruta, cresça logo, pelo amor de Deus! Cresça
logo e fique um cachorro sossegado, com bastante pêlo e as duas orelhas de pé!
Você vai ficar lindo quando crescer, Biruta, eu sei que vai!’’
— Alonso! — era a voz
de Leduína. — Deixe de falar sozinho e traga logo essa bacia. Já está quase
noite, menino.
— Chega de dormir,
seu vagabundo! — disse Alonso espargindo água no focinho do cachorro.
Biruta abriu os
olhos, bocejou com um ganido e levantou-se, estirando as patas dianteiras, num
longo espreguiçamento.
O menino equilibrou
penosamente a bacia na cabeça. Biruta seguiu-o aos pulos, mordendo-lhe os
tornozelos, dependurando-se com os dentes na barra do seu avental.
— Aproveita, seu bandidinho!
— riu-se Alonso. — Aproveita que eu estou com a mão ocupada, aproveita!
Assim que colocou a
bacia na mesa, ele inclinou-se para agarrar o cachorro. Mas Biruta esquivou-se,
latindo. O menino vergou o corpo sacudido pelo riso.
— Ai, Leduína, que o
Biruta judiou de mim.
A empregada pôs-se a
guardar rapidamente a louça. Estendeu-lhe uma caçarola com batatas:
— Olha aí para o seu
jantar. Tem ainda arroz e carne no forno.
— Mas só eu vou
jantar? — surpreendeu-se Alonso ajeitando a caçarola no colo.
— Hoje é dia de
Natal, menino. Eles vão jantar fora, eu também tenho a minha festa. Você vai
jantar sozinho.
Alonso inclinou-se. E
espiou apreensivo para debaixo do fogão. Dois olinhos brilharam no escuro:
Biruta ainda estava lá. Alonso suspirou. Era tão bom quando Biruta resolvia se
sentar! Melhor ainda quando dormia, tinha então a certeza de que não estava
acontecendo nada. A trégua. Voltou-se para Leduína.
— O que o seu filho
vai ganhar?
— Um cavalinho —
disse a mulher. A voz suavizou — Quando ele acordar amanhã, vai encontrar o
cavalinho dentro do sapato dele. Vivia me atormentando que queria um cavalinho,
que queria um cavalinho...
Alonso pegou urna
batata cozida, morna ainda. Fechou-a nas mãos arroxeadas.
— Lá no asilo, no
Natal, apareciam umas moças com uns saquinhos de balas e roupas. Tinha uma que
já me conhecia, me dava sempre dois pacotinhos em lugar de um. A madrinha. Um
dia, me deu sapatos , um casaquinho de malha e uma camisa.
— Por que ela não
ficou com você?
— Ela disse uma vez
que ia me levar, ela disse. Depois, não sei por que ela não apareceu mais...
Deixou cair na
caçarola a batala já fria. E ficou em silêncio, as mãos abertas em torno da
vasilha. Apertou os olhos. Deles, irradiou-se para todo o rosto uma expressão
dura. Dois anos seguidos esperou por ela. Pois não prometera levá-lo? Não
prometera? Nem lhe sabia o nome, não sabia nada a seu respeito, era apenas “a
madrinha”. Inutilmente a procurava entre as moças que apareciam no fim do ano
com os pacotes de presentes. Inutilmente cantava mais alto do que todos no fim
da festa, quando entáo se reunia aos meninos na capela. Ah, se ela pudesse
ouvi-lo
“O bom Jesus é quem
nos traz
A mensagem de amor e
alegria’’...
— Também é muita
responsabilidade tirar criança pra criar! — disse Leduína desamarrando o
avental. — Já chega os que a gente tem.
Alonso baixou o
olhar. E de repente, sua fisionomia iluminou-se. Puxou o cachorro pelo rabo.
— Êh, Biruta! Está
com fome, Biruta? Seu vagabundo! Vagabundo!.. Sabe Leduína, Biruta também vai
ganhar um presente que está escondido lá debaixo do meu travesseiro. Com aquele
dinheirinho que você me deu, lembra? Comprei uma bolinha de borracha, uma
beleza de bola! Agora ele não vai precisar mais morder suas coisas, tem a
bolinha só pra isso. Ele não vai mais mexer em nada, sabe, Leduína?
— Hoje cedo ele não
esteve no quarto de dona Zulu?
O menino empalideceu.
— Só se foi na hora
que fui lavar o automóvel... Por que, Leduína? Por quê? Que foi que aconteceu?
Ela hesitou. E
encolheu os ombros.
— Nada, Perguntei à
toa.
A porta abriu-se
bruscamente e a patroa apareceu. Alonso encolheu-se um pouco. Sondou a fisionomia
da mulher. Mas ela eslava sorridente. O menino sorriu também.
— Ainda não foi pra
sua festa, Leduína? — perguntou a moça num tom afável. Abotoava os punhos do
vestido de renda. — Pensei que você já tivesse saído... — E antes que a
empregada respondesse, ela voltou-se para Alonso: — Então? Preparando seu
jantarzinho?
O menino baixou a
cabeça. Quando ela lhe falava assim mansamente, ele não sabia o que dizer.
— O Biruta está
limpo, não está? — prosseguiu a mulher, inclinando-se para fazer uma carícia na
cabeça do cachorro. Biruta baixou as orelhas, ganiu dolorido e escondeu-se
debaixo do fogão.
Alonso tentou
encobrir-lhe a fuga:
— Biruta, Biruta!
Cachorro mais bobo, deu agora de se esconder... — voltou-se para a patroa. E
sorriu desculpando-se: — Até de mim ele se esconde.
A mulher pousou a mão
no ombro do menino:
— Vou numa festa onde
tem um menininho assim do seu tamanho. Ele adora cachorros. Então me lembrei de
levar o Biruta emprestado só por esta noite. O pequeno está doente, vai ficar
radiante, o pobrezinho. Você empresta seu Biruta só por hoje, não empresta? O
automóvel já está na porta. Ponha ele lá que já estamos de saída.
O rosto do menino
resplandeceu. Mas então era isso?!... Dona Zulu pedindo o Biruta emprestado,
precisando do Biruta! Abriu a boca para dizer-lhe que sim, que o Biruta estava
limpinho e que ficaria contente de emprestá-lo ao menino doente. Mas sem dar-
lhe tempo de responder, a mulher saiu apressadamente da cozinha.
— Viu Biruta? Você
vai numa festa! — exclamou. — Numa festa com crianças, com doces, com tudo!
Numa festa, seu sem-vergonha! — repetiu, beijando o focinho do cachorro. — Mas,
pelo amor de Deus, tenha juízo, nada de desordens! Se você se comportar, amanhã
cedinho te dou uma coisa. Vou te esperar acordado, hem? Tem um presente no seu
sapato... — acrescentou num sussurro, com a boca encostada na orelha do
cachorro. Apertou-lhe a pata — Te espero acordado, Biruta... Mas não demore
muito!
O patrão já estava na
direção do carro. Alonso aproximou-se.
— O Biruta, doutor.
O homem voltou-se
ligeiramente. Baixou os olhos.
— Está bem, está bem.
Deixe ele aí atrás.
Alonso ainda beijou o
focinho do cachorro. Em seguida, fez-lhe uma última carícia, colocou-o no
assento do automóvel e afastou-se correndo.
— Biruta vai adorar a
festa! — exclamou assim que entrou na cozinha. — E lá tem doces, tem crianças,
ele não quer outra coisa coisa! — Fez uma pausa. Sentou-se — Hoje tem festa em
toda parte, não, Leduína?
A mulher já se
preparava para sair.
— Decerto.
Alonso pôs-se a
mastigar pensativamente.
— Foi hoje que Nossa
Senhora fugiu no burrinho?
— Não, menino, Foi
hoje que Jesus nasceu. Depois então é que aquele rei manda prender os três.
Alonso concentrou-se.
— Sabe, Leduína, se
algum rei malvado quisesse matar o Biruta, eu me escondia com ele no meio do
mato e ficava morando lá a vida inteira, só nós dois — riu-se metendo uma
batata na boca. E de repente ficou sério, ouvindo o ruído do carro que já saía.
— Dona Zulu estava linda, não?
— Estava.
— E tão boazinha.
Você não achou que hoje ela estava boazinha?
— Estava, estava
muito boazinha.
— Por que você está
rindo?
— Nada — respondeu
ela pegando a sacola. Dirigiu-se à porta, Mas antes, parecia querer dizer
qualquer coisa de desagradável e por isso hesitava, contraindo a boca.
Alonso observou-a, e julgou adivinhar o que a
preocupava.
— Sabe, Leduína, você
não precisa dizer pra dona Zulu que ele mordeu sua carteirinha, eu já falei com
ele, já surrei ele. Não vai fazer mais isso nunca, eu prometo que não.
A mulher voltou-se
para o menino. Pela primeira vez, encarou-o. Vacilou ainda um instante. Decidiu
-se:
— Olha aqui, se eles
gostam de enganar os outros, eu não gosto, entendeu? Ela mentiu pra você,
Biruta não vai mais voltar.
— Não vai o quê? —
perguntou Alonso pondo a caçarola em cima da mesa. Engoliu com dificuldade o
pedaço de batata que ainda tinha na boca. Levantou-se. — Não vai o quê,
Leduína?
— Não vai mais
voltar. Hoje cedo ele foi no quarto dela e rasgou um pé de meia que estava no
chão. Ela ficou daquele jeito. Mas não te disse nada e agora de tardinha,
enquanto você lavava a louça, escutei a conversa dela com o doutor que não
queria mais esse vira-lata, que ele tinha que ir embora hoje mesmo, e mais
isso, e mais aquilo... O doutor pediu pra ela esperar, que amanhã dava um
jeito, você ia sentir muito, hoje era natal... Não adiantou. Vão soltar o
cachorro bem longe daqui e depois seguem pra festa. Amanhã ela vinha dizer que
o cachorro fugiu da casa do tal menino. Mas eu não gosto dessa história de
enganar os outros, não gosto. É melhor que você fique sabendo desde já o Biruta
irão vai voltar.
Alonso fixou na
mulher o olhar inexpressivo. Abriu a boca. A voz era unisopro.
— Não?...
Ela perturbou-se.
— Que gente também! —
explodiu. Bateu desajeitadamente no ombro do menino — Não se importe, não,
filho. Vai, vai jantar.
Ele deixou cair os
braços ao longo do corpo. E arrastando os pés, num andar de velho, foi saindo
para o quintal. Dirigiu-se à garagem. A porta de ferro estava erguida. A luz
fria do luar chegava até a borda do colchão desmantelado.
Alonso cravou os
olhos brilhantes num pedaço de osso roído, meio encoberto sob um rasgão do
lençol. Ajoelhou-se. Estendeu a mão tateante. Tirou de baixo do travesseiro uma
bola de borracha.
— Biruta — chamou
baixinho. — Biruta... — E desta vez só os lábios e moveram e não saiu som.
Muito tempo ele ficou
ali ajoelhado, segurando a bola. Depois, apertou-a fortemente contra o coração.