segunda-feira, 20 de junho de 2016

LUGARES COMUNS por Fernando Sabino



            "O homem é um animal racional, embora não pareça. Não há criança que, na escola, não tenha achado graça ao aprender isto, divertindo-se com os colegas: seu pai é um animal, dizem uns para os outros.
            Mas a criança é o pai do homem, se me permitem este lugar-comum que Wordsworth 1inventou. Antes de se saber animal e filho de animal, já sabe  usar a razão que Deus lhe deu, segundo a qual as palavras têm um significado concreto e definido, que pode ser colhido nos dicionários, servindo para designar exatamente aquilo para o qual foram criadas. Em consequência, os mistérios da linguagem figurada escapam de muito à tão apregoada imaginação infantil.
            Para as crianças, nada existe senão ao pé da letra  - e não duvido que, diante dessa expressão, pensassem logo numa letra com pés, dedos, unhas e sapatos. Ir num pé e voltar noutro, por exemplo, para o menino que eu fui, era uma façanha tão difícil como sair pela rua pulando numa perna só, depressa para atender a urgência contida na ordem de minha  mãe.
            Assim também, meu pai mandar que o empregado desse um pulo na cidade me parecia uma ordem extravagante, como ordenar que o pobre homem fosse até o centro da cidade, juntasse as pernas, desse um pulo no ar diante dos transeuntes e voltasse para casa. Nunca me conformei com a ideia de virar um palite se comesse pouco ao jantar, de virar uma bola se comesse muito e, em ambas as hipóteses. Ficar de cara amarrada, porque não queira obedecer. Amarrar a cara evidentemente só seria possível com o auxílio de cordas, e se nela houvesse um só pingo de vergonha, ela me escorreria pelo como uma lágrima até pingar no chão.
            [...]
            Começava a penetrar os mistérios da linguagem figurada e ia ingressando, submisso, no mundo convencional que me deixavam como herança. Ideias que só se impõem pelo fato de serem repetidas; hábitos que se formam pelo fato de serem impostos; palavras cuja significação original há muito se perdeu e que são usadas como rebanhos pacíficos. Gestos de valor convencionado como o das moedas, para o comércio da convivência.
            Um dia descobriria com espanto uma simples verdade, como o céu é azul, o oceano imenso, a noite é bela. E o céu passava a ser azul só para mim, o oceano era imenso porque eu o queria assim, a noite era mais bela que o dia porque era só minha, de mais ninguém. As ideias herdadas iam sendo reaprendidas, iam sendo desenterradas do lugar-comum como numa recriação. Era o que eu precisava para me tornar um escritor.

          Escrever bem não é repetir o que já foi bem escrito: é revalorizar os meios de expressão, juntar ou separar  palavras para fazê-las reagir, servir-se do que já foi dito para dizer pela primeira vez". 
 

SABINO, Fernando. Lugares-comuns. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1984. p. 33-6


1 William Wordsworth: poeta inglês que viveu de 1770 a 1850.




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