domingo, 4 de outubro de 2015

O TOM E O RÍTMO DA TIA FILÓ por Sara Menck


Perdi meus pais aos seis meses de idade. Fui adotada por uma tia e cresci em uma casebre de madeira. Éramos duas apenas.


Tia Filó não se casara. "Ninguém me quis", um dia me contou. Não sei por quê. Era linda. Os olhos azuis e doce por demais. Os dedos eram leves e ágeis nas teclas do velho piano: "Minha única herança". Havia outra herança...


Lia muito. Falava-me da vida."Certas coisas doem, mas há outras que superam a dor. A amizade sincera, por exemplo, é algo cheio de tons. Há alegria; companheirismo; respeito; espera; perdão; compreensão..."


O livro era o seu companheiro. Lia as histórias e depois as transformava em uma conversa antes de dormir. Eram fios a emendar. Como sabia emendar fios.


O primeiro dia em que me levou à escola, antes de tudo, fomos à biblioteca. "Sempre haverá um livro aqui à sua espera". Rimos. Aos sete anos, sabia interpretá-la como ninguém.


Quando me levava às aulas, caminhávamos e conversávamos quase no mesmo tom. "Pra tudo há um tom". Segurava forte nas minhas mãos. "Esse é um jeito de te proteger. Quando tiver seus filhos, mostre pra eles sentimentos bons por meio de atos. Nunca esquecerão o seu amor".


Um dia, voltei aborrecida da escola...


Já no portão do colégio, assim que me olhou, franziu a testa.


Nesse dia, passou o braço por cima do meu ombro e me aconchegou a ela. Caminhamos assim: "um, dois"...  "UM, dois, TRÊS, quatro".


 "E UM e dois e TRÊS e quatro". Procurava estabelecer um ritmo e um compasso em cada passo, para dar um tom ao meu silêncio...


Quando chegamos à casa, fez parecer sem muita pretensão: "se quiser e precisar, pode me contar o que houve".


arquivo SMMS/2013
Desde criança, silenciei diante das adversidades da vida. Ela sabia que algo estava errado, mas também aprendera a respeitar o meu jeito. Cresci mais por isso.


 À noite, embalou, no piano, uma cantiga de rodas. Depois, lemos Trem de ferro no tom de um trem. Sorrimos.


Antes de dormir, tive coragem: "Hoje me xingaram de órfã!" . Franziu a testa e só me olhou. Levantou-se e saiu. Voltou com um dicionário e me entregou. Foi a minha vez de franzir a testa. "Não sou abandonada, nem desprotegida, nem desamparada!". Correu os olhos rápidos na definição e soletrou lentamente "que perdeu os pais ou um deles..."


Pela primeira vez, contou-me a respeito do acidente que levara meus pais. O carro era velho. Ele não conseguiu frear. "Foi uma fatalidade, querida. Hoje não quiseram te xingar. Foram infelizes no dizer!".


Ensinou-me que era bom ler para refletir acerca da vida, das pessoas, do mundo. "É difícil entender as pessoas, mas podemos entender nós mesmos para lidar com elas". "Que bom ter você, tia Filó!".

Um dia, me vi sem ela, senti a dor que se sente quando inundam todas as dores e a sensação de que nunca mais sararia.

"Não cante tristezas, querida! A tristeza modifica o tom do caminho e o ritmo do caminhante..."

Não, não foi apenas uma tia com quem vivi até o iniciar da fase adulta. Foi quem literalmente me abraçou e mostrou um lado da vida. Um jeito melhor de querer ser.

"Precisamos de amigos, querida! Há aqueles de carne e osso, mas há - também - os de folhas e páginas..."


Sara Maria     em   05.05.2015

6 comentários:

  1. Nossa Sara, por isso você é especial! Adorei!! Bj

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  2. Gostei demais da bela mensagem: profunda em toda sua simplicidade...

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    1. Obrigada, professor Paulo!!

      Mania de professora que "defende" essa ideia há tanto tempo... rsrs

      Quisera as pessoas lessem mais!!! Abraços!!

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  3. Que sorte a minha por ter tido algumas tias Filó. Que desafio o meu em me tornar também uma Filó na vida de alguém ... Sabedoria e Simplicidade, encantam os olhos e despertam a alma. Adorei 'master' ... bjus <2

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