terça-feira, 15 de dezembro de 2015

RESÍDUO por Carlos Drummond de Andrade



De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco


Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).


Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.


Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.


Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.


Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.


Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?


Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.


De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil... 


De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.


E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo. 

Às vezes um botão. Às vezes um rato. 
     Carlos Drummond de Andrade





                                                                                         

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

O VALIOSO TEMPO DOS MADUROS por ?????????


Este texto é atribuído a autoria a Mário de Andrade. Parece que há algum engano nas citações e referências. 

Pelas minhas pesquisas, consta que é de Mário Pinto de Andrade. 


Como ainda não encontrei uma referência publicada em livro, deixo aqui o registro daquilo que me pareceu mais verdadeiro, até porque não me soou o estilo de Mário de Andrade, o poeta modernista. 


?????

Vale a leitura!! Quando encontrar, registrarei aqui o resultado da pesquisa.

Ótimo texto!! 

Vale a leitura!!
   




"Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui
para a frente do que já vivi até agora.
Tenho muito mais passado do que futuro.

Sinto-me como aquele menino que recebeu uma bacia de cerejas...
As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam
poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades.
Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflamados.
Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram,
cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para conversas intermináveis, para discutir
assuntos inúteis sobre vidas alheias que nem fazem parte da minha.
Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar
da idade cronológica, são imaturos.

Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo
de secretário geral do coral.

As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos’.
Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos, 

quero a essência,
minha alma tem pressa…

Sem muitas cerejas na bacia,

quero viver ao lado de gente humana,
muito humana; 

que sabe rir de seus tropeços, 
não se encanta com triunfos,
 não se considera eleita antes da hora, 
não foge de sua mortalidade.

Caminhar perto de coisas e pessoas de verdade,


O essencial faz a vida valer a pena.


E para mim, basta o essencial!
"


  
Obs.: Parece que a autoria do texto é atribuída a Ricado Gondim. 



Referência:

https://www.blogger.com/blogger.g?blogID=4121135503419769637#editor/target=post;postID=9091182162535447630 acesso em 12/10/2015.

Ver também a respeito desse texto em 

https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3182732  acesso em 31.01.2018.





domingo, 4 de outubro de 2015

O TOM E O RÍTMO DA TIA FILÓ por Sara Menck


Perdi meus pais aos seis meses de idade. Fui adotada por uma tia e cresci em uma casebre de madeira. Éramos duas apenas.


Tia Filó não se casara. "Ninguém me quis", um dia me contou. Não sei por quê. Era linda. Os olhos azuis e doce por demais. Os dedos eram leves e ágeis nas teclas do velho piano: "Minha única herança". Havia outra herança...


Lia muito. Falava-me da vida."Certas coisas doem, mas há outras que superam a dor. A amizade sincera, por exemplo, é algo cheio de tons. Há alegria; companheirismo; respeito; espera; perdão; compreensão..."


O livro era o seu companheiro. Lia as histórias e depois as transformava em uma conversa antes de dormir. Eram fios a emendar. Como sabia emendar fios.


O primeiro dia em que me levou à escola, antes de tudo, fomos à biblioteca. "Sempre haverá um livro aqui à sua espera". Rimos. Aos sete anos, sabia interpretá-la como ninguém.


Quando me levava às aulas, caminhávamos e conversávamos quase no mesmo tom. "Pra tudo há um tom". Segurava forte nas minhas mãos. "Esse é um jeito de te proteger. Quando tiver seus filhos, mostre pra eles sentimentos bons por meio de atos. Nunca esquecerão o seu amor".


Um dia, voltei aborrecida da escola...


Já no portão do colégio, assim que me olhou, franziu a testa.


Nesse dia, passou o braço por cima do meu ombro e me aconchegou a ela. Caminhamos assim: "um, dois"...  "UM, dois, TRÊS, quatro".


 "E UM e dois e TRÊS e quatro". Procurava estabelecer um ritmo e um compasso em cada passo, para dar um tom ao meu silêncio...


Quando chegamos à casa, fez parecer sem muita pretensão: "se quiser e precisar, pode me contar o que houve".


arquivo SMMS/2013
Desde criança, silenciei diante das adversidades da vida. Ela sabia que algo estava errado, mas também aprendera a respeitar o meu jeito. Cresci mais por isso.


 À noite, embalou, no piano, uma cantiga de rodas. Depois, lemos Trem de ferro no tom de um trem. Sorrimos.


Antes de dormir, tive coragem: "Hoje me xingaram de órfã!" . Franziu a testa e só me olhou. Levantou-se e saiu. Voltou com um dicionário e me entregou. Foi a minha vez de franzir a testa. "Não sou abandonada, nem desprotegida, nem desamparada!". Correu os olhos rápidos na definição e soletrou lentamente "que perdeu os pais ou um deles..."


Pela primeira vez, contou-me a respeito do acidente que levara meus pais. O carro era velho. Ele não conseguiu frear. "Foi uma fatalidade, querida. Hoje não quiseram te xingar. Foram infelizes no dizer!".


Ensinou-me que era bom ler para refletir acerca da vida, das pessoas, do mundo. "É difícil entender as pessoas, mas podemos entender nós mesmos para lidar com elas". "Que bom ter você, tia Filó!".

Um dia, me vi sem ela, senti a dor que se sente quando inundam todas as dores e a sensação de que nunca mais sararia.

"Não cante tristezas, querida! A tristeza modifica o tom do caminho e o ritmo do caminhante..."

Não, não foi apenas uma tia com quem vivi até o iniciar da fase adulta. Foi quem literalmente me abraçou e mostrou um lado da vida. Um jeito melhor de querer ser.

"Precisamos de amigos, querida! Há aqueles de carne e osso, mas há - também - os de folhas e páginas..."


Sara Maria     em   05.05.2015

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

SONETO DO MAIOR AMOR por Vinicius de Moraes



Referência:

MORAES, Vinicius de. O encontro do cotidiano. In: Poesia completa e prosa. Organização de
Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1998. p. 310.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

VIDA OBSCURA por Cruz e Souza

"Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
ó ser humilde entre os humildes seres,
embriagado, tonto de prazeres,
o mundo para ti foi negro e duro.

Atravessaste no silêncio escuro
a vida presa a trágicos deveres
e chegaste ao saber de altos saberes
tornando-te mais simples e mais puro.

Ninguém te viu o sentimento inquieto,
magoado, oculto e aterrador, secreto,
que o coração te apunhalou no mundo,

Mas eu que sempre te segui os passos
sei que cruz infernal prendeu-te os braços
e o teu suspiro como foi profundo! "


Cruz e Souza 




Referência:


SOUSA, Cruz. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1961.

quinta-feira, 28 de maio de 2015

O TEAR DO TEMPO por autor desconhecido

A vida do homem é urdida no tear do tempo
Em um padrão que ele nem mesmo vê,
Enquanto os tecelões trabalham e as lançadeiras
Voam até a aurora da eternidade.


Algumas lançadeiras sustentam fios de prata
Enquanto em outra deslizam fios de ouro,
Embora muitas vezes os matizes mais escuros
Sejam tudo o que se possa ver.

Mas os tecelões observam com olho hábil
Cada lançadeira correr de cá para lá,
E veem o padrão surgir tão destramente
No movimento lento e certo do tear.

É Deus decerto quem planeja a trama:
Cada fio, o escuro e o claro,
É escolhido por Sua habilidade mestra
E colocado na urdidura com esmero.

Ele, que só lhes conhece a beleza,
Guia as lançadeiras em que passam
Tanto os fios menos atraentes
Como os de mais puro ouro.

Só quando cada tear houver silenciado
E a lançadeira deixar de deslizar,
Deus irá revelar a trama
E a cada um explicar o porquê

De os fios escuros serem necessários
Na hábil mão do tecelão
Tanto quanto os de ouro e prata
Para a trama que Ele planejou.

(Retirado do livro "O Resgate do Tigre" escrito por Colleen Houck)

sexta-feira, 15 de maio de 2015

NARIZINHO ARREBITADO por Monteiro Lobato



de Como Narizinho conhece o Príncipe Encantado

 


Uma vez, depois de dar comida aos peixinhos, Lúcia sentiu os olhos pesados de sono. Deitou-se na grama com a boneca no braço e ficou seguindo as nuvens que passeavam pelo céu, formando ora castelos, ora camelos. E já ia dormindo, embalada pelo mexerico das águas, quando sentiu cócegas no rosto. Arregalou os olhos: um peixinho vestido de gente estava de pé na ponta do seu nariz.

Vestido de gente, sim! Trazia casaco vermelho, cartolinha na cabeça e guarda-chuva na mão — a maior das galantezas!
O peixinho olhava para o nariz de Narizinho com rugas na testa, como quem não está entendendo nada do que vê.

A menina reteve o fôlego de medo de o assustar, assim ficando até que sentiu cócegas na testa. Espiou com o rabo dos olhos. Era um besouro que pousara ali. Mas  um besouro também vestido de gente, trajando sobrecasaca preta, óculos e bengala.

Narizinho imobilizou-se ainda mais, tão interessada estava achando aquilo.

Ao ver o peixinho, o besouro tirou o chapéu, respeitosamente.

— Muito boas tardes, senhor príncipe! — disse ele.

— Viva, mestre Cascudo! — foi a resposta.

— Que novidade traz Vossa Alteza por aqui, príncipe?

— É que lasquei duas escamas do filé e o doutor Caramujo me receitou ares do campo. Vim tomar o remédio neste prado que é muito meu conhecido, mas encontrei cá este morro que me parece estranho — e o príncipe bateu com a biqueira do guarda-chuva na ponta do nariz de Narizinho e disse:

— Creio que é de mármore — observou.

Os besouros são muito entendidos em questões de terra, pois vivem a cavar buracos. Mesmo assim aquele besourinho de sobrecasaca não foi capaz de adivinhar que qualidade de “terra” era aquela. Abaixou-se, ajeitou os óculos no bico, examinou o nariz de Narizinho e disse:

— Muito mole para ser mármore. Parece antes requeijão.

— Muito moreno para ser requeijão. Parece antes rapadura — volveu o príncipe.

O besouro provou a tal terra com a ponta da língua.

— Muito salgada para ser rapadura. Parece antes...

Mas não concluiu, porque o príncipe o havia largado para ir examinar as sobrancelhas.

— Serão barbatanas, mestre Cascudo? Venha ver. Por que não leva algumas para os seus meninos brincarem de chicote?  

O besouro gostou da idéia[i] e veio colher as barbatanas. Cada fio que arrancava era uma dorzinha aguda que a menina sentia — e bem vontade teve ela de o espantar dali com uma careta! Mas tudo suportou, curiosa de ver em que daria aquilo.

deixando o besouro às voltas com as barbatanas, o peixinho foi examinar as ventas.

— Que belas tocas para uma família de besouros! — exclamou.

— Por que não se muda para aqui, mestre Cascudo? Sua esposa havia de gostar desta repartição de cômodos.
O besouro, com o feixe de barbatanas de baixo do braço, lá foi examinar as tocas. Mediu a altura com a bengala.

— Realmente, são ótimas — disse ele.

— Só receio que more aqui dentro alguma fera peluda.  E para certificar-se cutucou bem lá no fundo.

— Hu! Hu! Sai fora, bicho imundo!...

Não saiu fera nenhuma, mas como a bengala fizesse cócegas no nariz de Lúcia, o que saiu foi um formidável espirro — Atchim!... e os dois bichinhos, pegados de surpresa, reviraram de pernas para o ar, caindo um grande tombo no chão.


— Eu não disse? — exclamou o besouro, levantando-se e escovando com a manga a cartolinha suja de terra. — É, sim, ninho de fera, e de fera espirradeira! Vou-me embora. Não quero negócios com essa gente. Até logo, príncipe! Faço votos para que sare e seja muito feliz.

E lá se foi, zumbindo que nem um avião.
O peixinho, porém, que era muito valente, permaneceu firme e, cada vez mais intrigado com a tal montanha que espirrava. Por fim a menina teve dó dele e resolveu esclarecer todo o mistério. Sentou-se de súbito e disse:

— Não sou montanha nenhuma, peixinho. Sou Lúcia, a menina que todos os dias vem dar comida a vocês. Não me reconhece?

— Era impossível reconhecê-la, menina. Vista de dentro d’água parece muito diferente...

— Posso parecer, mas garanto que sou a mesma. Esta senhor a aqui é a minha amiga Emília.

O peixinho saudou respeitosamente a boneca, e em seguida apresentou-se como o príncipe Escamado, rei do reino das Águas Claras.

— Príncipe e rei ao mesmo tempo! — exclamou a menina batendo palmas. — Que bom, que bom, que bom! Sempre tive vontade de conhecer um príncipe-rei.

Conversaram longo tempo, e por fim o príncipe convidou-a para uma visita ao seu reino.

Narizinho ficou no maior dos assanhamentos.

— Pois vamos e já — gritou — antes que tia Nastácia me chame.

E lá se foram os dois de braços dados, como velhos amigos. A boneca seguia atrás sem dizer palavra.

— Parece que dona Emília está emburrada.

— Não é burro, não, príncipe. A pobre é muda de nascença. Ando à procura de um bom doutor que a cure.

— Há um excelente na corte, o célebre doutor Caramujo. Emprega umas pílulas que curam todas as doenças, menos a gosma dele. Tenho a certeza de que o doutor Caramujo põe a senhora Emília a falar pelos cotovelos.

E ainda estavam discutindo os milagres das famosas pílulas quando chegaram  a certa gruta que Narizinho já mais havia visto naquele ponto. Que coisa estranha! A paisagem estava outra.

— É aqui a entrada do meu reino — disse o príncipe.
Narizinho espiou, com medo de entrar.

— Muito escura, príncipe. Emília é uma grande medrosa.  
A resposta do peixinho foi tirar do bolso o um vaga-lume de cabo de arame, que lhe servia de lanterna viva. A gruta clareou até longe e a “boneca” perdeu o medo.

Entraram. Pelo caminho foram saudados, com grandes marcas de respeito, por várias corujas e numerosíssimos morcegos.
Minutos depois chegavam ao portão do reino. A menina abriu a boca, admirada.

— Quem construiu este maravilhoso portão de coral, príncipe?  É tão bonito que até parece um sonho.

— Foram os Pólipos, os pedreiros mais trabalhadores e incansáveis do mar. Também meu palácio foi construído por  eles, todo de coral rosa e branco.

— Foram os Pólipos, os pedreiros mais trabalhadores e incansáveis do mar. Também meu palácio foi construído por  eles, todo de coral rosa e branco.
Narizinho ainda estava de boca aberta quando o príncipe notou que o portão não fora fechado naquele dia.

— É a segunda vez que isto acontece — observou o príncipe com cara feia. —  Aposto que o guarda está dormindo.  
Entrando, verificou que era assim. O guarda dormia um sono roncado. Esse guarda não passava dum sapão muito feio, que tinha o posto de major no exército marinho. Major Agarra-e-não-larga-mais.
Recebia como ordenado cem moscas por dia para que ali ficasse, de lança em punho, capacete na cabeça e a espada à cinta, sapeando a entrada do palácio.
 O Major, porém, tinha o vício de dormir fora de horas, e pela segunda vez fora apanhado em falta. O príncipe ajeitou-se para acordá-lo com um pontapé na barriga, mas a menina interveio.

— Não ainda! Eu tenho uma [ii]idéia  muito boa. Vamos vestir este sapo de mulher, para ver a cara dele quando acordar.
E sem esperar resposta, foi tirando a saia da Emília e vestindo-a, muito  devagarinho, no dorminhoco. Pôs-lhe também a touca da boneca em lugar do capacete, e o guarda-chuva do príncipe em lugar de lança.
Depois o deixou assim transformado numa perfeita velha coroca, disse ao príncipe:

— Pode chutar agora.


o príncipe, zás!... pregou-lhe um valente pontapé na barriga.

— Hum!...— gemeu o sapo, abrindo os olhos, ainda cego de sono.
o príncipe engrossou a voz e ralhou:
— Bela coisa. Major! Dormindo como um porco e ainda por cima vestido de velha coroca... Que significa isto?
o sapo, sem compreender coisa nenhuma, mirou-se apatetadamente num  espelho que havia por ali. E botou a culpa no pobre espelho.

— É mentira dele, príncipe! Não acredite. Nunca fui assim...

— Você de fato nunca foi assim — explicou Narizinho. — Mas, como dormiu escandalosamente durante o serviço, a fada do sono o virou em velha coroca. Bem feito...

— E por castigo — ordenou o príncipe — está condenado a engolir cem pedrinhas redondas, em vez das cem moscas do nosso trato.
o triste sapo derrubou um grande beiço, indo, muito jururu, encorujar-se a um canto.
Tanta pena do sapo sentiu Narizinho que, mais tarde, foi bater à porta do quarto do príncipe.

_ Quem é? - indagou de dentro do peixinho.

_ É Narizinho. Quero que  perdoe ao pobre do Major Agarra.

_ Perdoar de quê? - exclamou o príncipe, que tinha a memória fraca.

_ Pois não o condenou a engolir cem pedrinha redondas?  Já engoliu noventa e nove e está engasgado com a última. Não entra. Não cabe!  Agora, o Major Agarra-e-não-larga-mais está lá no jardim, de barriga estufada, gemendo e chorando - explicou a menina.

o príncipe danou.
_ É muito estúpido o Major! Eu falei aquilo de brincadeira. Diga-lhe que desengula as pedrinhas e não me incomode.

Narizinho foi, pulando de contente, dar a boa notícia ao sapo.

Monteiro Lobato





Ilustrações: Moacir Rodrigues
 Capa: Moema Cavalcanti



[i] ideia - Acordo Ortográfico janeiro de 2009. Língua Portuguesa - Reforma Ortográfica .
[ii] idem


Referência:

LOBATO, Monteiro.  Fragmento do Reinações de Narizinho. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense.