sábado, 27 de setembro de 2014

"ISTO" por Fernando Pessoa

 
 
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
com a imaginação.
Não uso o coração.

Tudo o que sonho ou passo, 
o que me falha ou finda,
É como um terraço
Sobre outra coisa ainda. 
Essa coisa é que é linda.

Por isso escrevo em meio
do que não está ao pé,
livre do meu enleio, 
sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!

Referência:      

PESSOA, Fernando. In: Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.p. 99.




quarta-feira, 24 de setembro de 2014

"OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO" por Carlos Drummond de Andrade





Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Fonte:

quinta-feira, 18 de setembro de 2014

terça-feira, 9 de setembro de 2014

A SERRA DO ROLA-MOÇA por Mário de Andrade


A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não...

Eles eram do outro lado,
Vieram na vila casar.
E atravessaram a serra,
O noivo com a noiva dele
Cada qual no seu cavalo.


Antes que chegasse a noite
Se lembraram de voltar.
Disseram adeus pra todos
E se puserem de novo
Pelos atalhos da serra
Cada qual no seu cavalo.


Os dois estavam felizes,
Na altura tudo era paz.
Pelos caminhos estreitos
Ele na frente, ela atrás.
E riam. Como eles riam!
Riam até sem razão.

A Serra do Rola-Moça
Não tinha esse nome não.

As tribos rubras da tarde
Rapidamente fugiam
E apressadas se escondiam
Lá embaixo nos socavões,
Temendo a noite que vinha.

Porém os dois continuavam
Cada qual no seu cavalo,
E riam. Como eles riam!
E os risos também casavam
Com as risadas dos cascalhos,
Que pulando levianinhos
Da vereda se soltavam,
Buscando o despenhadeiro.

Ali, Fortuna inviolável!
O casco pisara em falso.
Dão noiva e cavalo um salto
Precipitados no abismo.

Nem o baque se escutou.
Faz um silêncio de morte,
Na altura tudo era paz ...
Chicoteado o seu cavalo,
No vão do despenhadeiro
O noivo se despenhou.

E a Serra do Rola-Moça
Rola-Moça se chamou.


Mário de Andrade







Referência:

ANDRADE.  Mário de. Poesias Completas. São Paulo: Martins Fontes/Itatiaia, 1980. V. 1. p. 132-3.