domingo, 30 de dezembro de 2012

RECEITA DE ANO NOVO por Carlos Drummond de Andrade


Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação como todo o tempo já vivido
(mal vivido ou talvez sem sentido)


para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser,
novo até no coração das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,

se ama, se compreende, se trabalha,
Arquivo: smms



você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens?

passa telegramas?).


Não precisa fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.



Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.







É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

CASO PLUVIOSO por Carlos Drummond de Andrade



" A chuva me irritava. Até que um dia
descobri que maria é que chovia.

A chuva era maria. E cada pingo
de maria ensopava o meu domingo.

E meus ossos molhando, me deixava
como terra que a chuva lavra e lava.

Eu era todo barro, sem verdura...
maria, chuvosíssima criatura!

Ela chovia em mim, em cada gesto,
pensamento, desejo, sono, e o resto.

Era chuva fininha e chuva grossa,
matinal e noturna, ativa... Nossa!

Não me chovas, maria, mais que o justo
chuvisco de um momento, apenas susto.

Não me inundes de teu líquido plasma,
não sejas tão aquático fantasma!

Eu lhe dizia – em vão – pois que maria
quanto mais eu rogava, mais chovia.

E chuveirando atroz em meu caminho,
o deixava banhado em triste vinho,

que não aquece, pois água de chuva
mosto é de cinza, não de boa uva.

Chuvadeira, maria, chuvadonha,

Chuvinhenta, chuvil, pluvimedonha!

Eu lhe gritava: Pára! E ela, chovendo,
poças d’água gelada ia tecendo.

Choveu tanto maria em minha casa
que a correnteza forte criou asa

e um rio se formou, ou mar, não sei,
sei apenas que nele me afundei.

E quanto mais as ondas me levavam,
as fontes de maria mais chuvavam,

de sorte que com pouco, e sem recurso,
as coisas se lançaram no seu curso,

e era o mundo molhado e sovertido
sob aquele sinistro e atro chuvido.

Os seres mais estranhos se juntando
na mesma aquosa posta iam clamando

contra essa chuva, estúpida e mortal
catarata (jamais houve outra igual).

Anti-petendam cânticos se ouviram.
Que nada! As cordas d’água mais deliram,

e maria, torneira desatada,
mais se dilata em sua chuvarada.

Os navios soçobram. Continentes
já submergem com todos os viventes,

e maria chovendo. Eis que a essa altura,
delida e fluida a humana enfibratura,

e a Terra não sofrendo tal chuvência,
comoveu-se a Divina Providência,

e Deus, piedoso e enérgico, bradou:
Não chove mais, Maria! – e ela parou."


Carlos Drummond de Andrade



ANDRADE, Carlos Drummond de.  Seleta em prosa e verso. 12ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1994, p. 166-168)







sexta-feira, 23 de novembro de 2012

O LIVRO, A ESCRITA E A LEITURA por Sara Menck

 



O LIVRO, A ESCRITA E A LEITURA 




Escrevi este texto para uma turma de 8ª série do ensino fundamental, atual 9º ano. Era o ano de 1993, momento em que eu realizava uma pesquisa a respeito de leitura para um trabalho acadêmico. Essa mesma turma encenou e apresentou esse texto. Fiz uma gravação da encenação deles. E fiquei encantada com o resultado do trabalho.

 Naquela época, eu pensava que  tinha uma varinha mágica em minhas mãos. Hoje tenho plena certeza de que a varinha mágica estava era nas mãos deles.

Depois,  em 1994, a minha irmã - Terezinha Menk - professora primária da rede municipal de ensino, estava se aposentando e o seu último trabalho na escola, no final daquele ano, foi apresentar este mesmo texto com estudantes do 4º ano (atual 5º ano) do ensino fundamental. Também tenho uma gravação da peça apresentada por essas crianças. Confesso que fiquei emocionada com aquele resutlado. Elas souberam ser fiel ao texto e  representar as personagens: o livro, a escrita e a leitura de modo ímpar. 

 Vamos ao texto?



Caracterização das personagens:

Livro: Uma caixa grande, formatada como um livro e dentro da caixa , um aluno, com a cabeça, mãos e pés de fora.

Escrita: Estudante vestida de preto. Se for menina: Saia curta preta, blusa preta, meias finas pretas e sapatos pretos. Em toda a sua roupa devem ser pregados letras. Palavras.

Leitura: Toda de branco. Se for menina, usar saia curta, blusa e meia fina.

Cenário: Biblioteca

Musica: Caderno (Toquinho e Vinícius

TOCAR A MÚSICA – O Caderno de Toquinho e Vinicius.

Início da peça - 

(A Leitura entra e começa a mexer nos livros. Diminuir lentamente o som até ficar bem suave. E então um livro - que está em um canto qualquer da biblioteca - conversa com a Leitura envolvida também em procurar um livro...)

LIVRO – Oi, quem é você?

LEITURA – Oi... Eu???  Ah,  Eu sou a atividade fundamental desenvolvida pela escola para a formação dos alunos. Sou a LEITURA...  E você??? parece tão tristinho, por quê?




LIVRO – Ah, Nem sei! Estou só... muito só... Ninguém me quer...

LEITURA – Você? !? Um livro só!?? Você não imagina o  companheirão  que você é!!!

LIVRO – Eu?? Companheirão??  Não sei não. Sabe, estou nesta biblioteca há muito tempo e sabe quantos já me leram?

LEITURA (curiosa)  - Quantos??
LIVRO – Ninguém... Quero dizer algumas pessoas dão uma olhada em algumas palavras e vão embora...

LEITURA – Ih... Ta mal, heim!?

LIVRO – Sabe, Leitura, o problema é sério. Há poucos leitores nesta escola. Eu queria tanto sair daqui. .. conhecer outros lugares, pessoas e ate alguns quartos...garotas...

LEITURA  Nossa...  Por que será que ninguém te pega para ler?

LIVRO  -  É que sou feio,  horroroso. Minhas letras são pequenas. Ai, como sou infeliz... Um livro virgem!!! Quando é que  alguém vai me  ler inteirinho??

(toca a musica – som alto – a ESCRITA entra dançando bem devagar)
Diminuir lentamente o som.

ESCRITA – Eu conhece um pessoalzinho que está aprendendo e pode te ler...

LIVRO – Não sei não...Sou tão complicado...

LEITURA – Ah, não é não. O que esta faltando aqui é um bom leitor.

LIVRO – Talvez,  sabe? Outro dia eu estava na estante e uma professora entrou e eu tive a felicidade de ser tocado por aquelas mãos... Porem, ela só leu uma palavra e devolveu-me no armário...

ESCRITA – Pelo menos alguém já sabe que você existe e se é uma professora muito melhor! Ela pode te  indicar para algum aluno...

LIVRO – é... talvez...

LEITURA  - Sabe,  Escrita, acho que o livro tem razão.
 
ESCRITA – Razão do quê?

LEITURA – Os estudantes precisam ler mais... mais... mais...

LIVRO  - E se eles  não leem  vão aprender pouco na escola.

LEITURA – E se os alunos aprendessem a ler mais,  quando saíssem da escola a LEITURA os levaria a aprender muito mais na vida....

LIVRO  - Ééé... "A leitura é uma herança maior do que qualquer diploma..."

ESCRITA – Ah, e tem mais. Quem lê pode escrever bem também., ih até o pensamento vai melhorando, vai ficando mais esperto...


(TOCA A MUSICA) – A Leitura vira o livro mostrando o lado em que está escrito : DICIONARIO.

(LEITURA E ESCRITA fazem  cara de espanto e começam a rir...)

ESCRITA – Sabe, Sr. Livro qual e o seu  pequeno problema?  Por que ninguém te lê...assim .... todinho?

LIVRO – Por quê?   (o dicionário demonstra curiosidade)

ESCRITA – Você é UM DICIONÁRIO e ficará sempre aqui. As pessoas só vão te procurar para fazer consultas sobre as palavras, conhecer novas significações... Você é como um “GRANDE SABEDOR” e todo leitor sempre vai precisar de consultar você, e,  claro, todo escritor também...

LIVRO – Sou não. Já ouvi falar que o dicionário é o PAI DOS BURROS!!!

LEITURA – Ah, isso não. Você é o melhor. Sabe mais que os outros livros... Conhece todas as palavras... Pare de ser tão chorão...

ESCRITA – Eu dependo de você para sair toda bonita por ai.

LEITURA – E eu dependo de uma boa escrita para ser uma boa leitura.

LIVRO – É ... acho que vocês tem razão. Eu é que estou ficando velho, pesadão, chorão, também com tantas palavras... Todos os dias estão inventando palavras novas...

LEITURA – Eu sei.  Eu entendo você. Acho que isso é crise existencial. Mas não se preocupe, isso acontece com todo mundo. E mesmo sem sair desta biblioteca você é muitíssimo importante para muitas leituras.... E, não se aborreça com essa história de engordar...

ESCRITA – Deixa o povo inventar palavras... Carlos Drummnd de Andrade já disse que lutar com as palavras é a luta mais vã, no entanto, lutamos... E elas são muitas e nós... tão pouco...

TOCA A MUSICA NOVAMENTE  as personagens saem do palco.


Retornam e falam (em coro)


 
“A leitura é uma herança melhor do que qualquer diploma” *


Ao final, declamar, em forma de jogral, o texto


de


Lygia Bojunga Nunes 








Despedem-se do público e cantam um trechinho da música:

 “Só peço um favor, se puder, não me deixe em um canto qualquer...”
 
(Toquinho)


* Citação de Luiz C. Cagliari  - Livro: Alfabetização e Linguistica -  Editora Scipione

 
Sara Maria em junho de 1993. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

"LONGE DOS OLHOS... " por Machado de Assis


LONGE DOS OLHOS ...


“Na verdade, era pena que uma moça tão prendada de qualidades morais e físicas, como a filha do desembargador, nenhum sentimento inspirasse ao bacharel Aguiar. Mas não a lastime a leitora, porque o bacharel Aguiar nada dizia ao coração de Serafina, apesar dos seus talentos, da rara elegância das suas maneiras, de todos quantos dotes costumam adornar um herói de romance. 
E não é romance isto, senão história verídica e real, pelo que, vai esta narrativa com as exíguas proporções de  uma notícia, sem enfeites de estilo nem recheio de reflexões. O caso conto como o caso foi.  Sabido que os dois se não amavam nem pendiam para lá, convém saber mais que o gosto, o plano e não sei se também o interesse dos pais é que eles se amassem e casassem. Os pais punham uma  coisa, e Deus dispunha outra. O comendador Aguiar, pai do bacharel, insistia ainda mais no casamento, pelo desejo que tinha de o meter na política, o que lhe parecia fácil desde que o filho se tornasse genro do desembargador, membro ativíssimo de um dos partidos e por agora deputado à Assembléia Geral. 
O desembargador pela sua parte achava que lhe não fazia mal nenhum a filha participar da pingue herança que devia receber o filho do comendador, por morte deste. Pena era que os dois jovens, esperanças de seus pais, derrubassem todos estes planos olhando um para o outro com a máxima indiferença. As famílias visitavam-se freqüentemente, as reuniões e as festas sucediam-se, mas nem Aguiar nem Serafina pareciam dar um passo para  o outro. Tão grave caso exigia pronto remédio, e foi o comendador quem tomou a resolução  de lho dar sondando o espírito do bacharel. 
— João, disse o velho pai certa noite de domingo, depois do chá, achandose com o filho a sós no gabinete: Acaso nunca pensaste em ser homem político? 
— Oh! Nunca! Respondeu o bacharel espantado com a pergunta. Por que razão pensaria eu na política? 
— Pela mesma razão porque outros pensam... 
— Mas eu não tenho vocação. 
— A vocação faz-se. 
João sorriu. 
O pai continuou. 
— Não te faço esta pergunta à toa. Já houve quem me perguntasse a mesma coisa a teu respeito, eu não tive que responder porque a falar verdade as razões que me davam eram de peso. 
— Quais eram? 
— Diziam-me que tu andavas em colóquios e conferências com o
desembargador. 
— Eu? Mas naturalmente converso com ele; é pessoa da nossa amizade. 
— Foi o que eu disse. A pessoa pareceu convencer-se da razão que eu lhe dava, e então imaginou outra coisa...  O bacharel arregalou os olhos à espera de ouvir outra coisa, enquanto o comendador acendia um charuto. 
— Imaginou então, continuou o comendador puxando uma fumaça, que tu andavas... Quero dizer... Que pretendias... Em suma, um namoro! 
— Um namoro! 
— É verdade. 
— Com o desembargador? 
— Velhaco! Com a filha. 
João Aguiar deu uma gargalhada. O pai pareceu rir também, mas reparando bem não era um riso, era uma careta. 
Depois de um silêncio: 
— Mas não vejo que houvesse alguma coisa de admirar, disse o comendador; tem-se visto namorar muito rapaz e muita moça. Tu estás na idade do casamento, ela também; nossas famílias visitam-se com freqüência; vocês falam-se com intimidade. Que admira que um estranho supusesse alguma coisa? 
— Tem razão; mas não é verdade. 
— Pois tanto melhor... Ou tanto pior. 
— Pior? 
— Maganão! Disse o velho pai afetando um ar galhofeiro, parece-te que a moça é algum peixe podre? Pela minha  parte, entre as moças com que temos relações de família, nenhuma acho que se lhe compare. 
— Oh! 
— Oh! Quê! 
— Protesto. 
— Protestas? Achas então que ela... 
— Acho que é muito formosa e prendada, mas não acho que seja a mais formosa e prendada de todas as que conhecemos... 
— Mostra-me alguma... 
— Ora, há tantas! 
— Mostra-me uma. 
— A Cecília por exemplo, a Cecília  Rodrigues, para o meu gosto é muito mais bonita que a filha do desembargador. 
— Não digas isso; uma lambisgóia! 
— Meu pai! Disse João Aguiar com um tom de ressentimento que fez pasmar o comendador. 
— Que é? Perguntou este. 
João Aguiar não respondeu. O comendador arrugou a testa e interrogou o rosto mudo do filho. Não leu, mas adivinhou alguma coisa desastrosa; — desastrosa, entenda-se, para os seus cálculos cônjugo-políticos ou políticoconjugais, como melhor nome haja. 
— Dar-se-á caso que... Começou a dizer o comendador. 
— Que eu a namore? Interrompeu galhofeiramente o filho. 
— Não era isso o que te ia perguntar, acudiu o comendador (que aliás não ia perguntar outra coisa), mas visto que tocaste nesse ponto, não era mau que me dissesses... 
— A verdade? 
— A singela verdade. 
— Gosto dela, ela gosta de mim, e aproveito esta ocasião meu pai, para... 
— Para nada, João! 
O bacharel fez um gesto de espanto. 
— Casar, não é? Perguntou o comendador. Mas tu não vês a impossibilidade de semelhante coisa? Impossível, não digo que seja; tudo pode acontecer neste mundo, se a natureza o pede. Mas a sociedade tem suas leis que não devemos violar, e segundo elas esse casamento é impossível. 
— Impossível! 
— Tu levas-lhe em dote os meus  bens, a tua carta de bacharel e um princípio de carreira. Que te traz ela? Nem sequer essa beleza que só tu lhe vês. Demais, e isto é o importante, não se dizem boas coisas daquela família. 
— Calúnias! 
— Pode ser, mas calúnias que correm e  se acreditam; e visto que tu não podes fazer na véspera do casamento um manifesto aos povos desmentindo o que se diz e provando que nada é verdade, segue-se que as calúnias triunfarão. 
Era a primeira vez que o bacharel conversava com o pai a respeito daquele grave ponto do seu coração. Aturdido com as objeções dele, não achou logo que responder e todo se limitou a interrompê-lo com um ou outro monossílabo. O comendador continuou no mesmo tom e concluiu dizendo que esperava dele não lhe desse um grave desgosto no fim da vida.
  — Por que te não levou a fantasia à filha do desembargador ou outra nas mesmas condições? A Cecília, não, nunca será minha nora. Pode casar contigo, é verdade, mas então não serás meu filho.  João Aguiar não achou que responder ao pai. Ainda que achasse, não o poderia fazer porque quando deu acordo de si ele estava longe. 
O bacharel foi para o seu quarto. 
Entrando no quarto, João Aguiar fez alguns gestos de enfado e zanga e de si para si prometeu que, embora não agradasse ao pai, havia de casar com a formosa Cecília, cujo amor era para ele já uma necessidade  da vida... O pobre rapaz tão depressa fez este protesto como entrou a ficar frio com a idéia de uma luta, que se lhe afigurava odiosa para ele e para o pai, em todo o caso triste para ambos. As palavras deste relativamente à família da namorada fizeram-lhe grave impressão no espírito; mas ele concluiu, que ainda sendo verdadeira a murmuração, nada tinha com isso a formosa Cecília, cujas qualidades morais estavam acima de todo o elogio.  A noite correu assim nestas e noutras reflexões até que o bacharel dormiu e na manhã seguinte alguma coisa se lhe havia dissipado das apreensões da véspera. 
— Tudo se pode vencer, disse ele; o que é preciso é ser constante. 
O comendador, porém, tinha dado o passo mais difícil que era falar no assunto ao filho; vencido o natural acanhamento que resultava da situação de ambos, aquele assunto tornou-se assunto  obrigado de quase todos os dias. As visitas à casa do desembargador amiudaram-se; amiudaram-se igualmente as deste à casa do comendador. Os dois jovens foram assim metidos à casa um do outro; mas se João Aguiar parecia frio, Serafina parecia gélida. Os dois estimavam-se antes, e ainda se estimavam então; entretanto, a nova situação que lhes haviam criado, estabelecera entre ambos uma certa repulsa que a polidez mal disfarçava. 
Porquanto, leitora amiga, o desembargador fizera à filha um discurso igual ao do comendador. As qualidades do bacharel foram postas em relevo com suma habilidade; as razões financeiras do casamento, melhor direi as vantagens dele foram levemente indicadas de maneira a desenhar aos olhos da moça um brilhante futuro de pérolas e carruagens. 
Infelizmente (tudo se conspirava contra os dois pais), infelizmente havia no coração de Serafina um obstáculo semelhante ao que João Aguiar tinha no seu,Serafina amava a outro. Não se atreveu a dizê-lo ao pai, mas foi dizê-lo a sua mãe, que não aprovou nem desaprovou a escolha visto que a senhora pensava pela boca do marido, a quem foi transmitida a revelação da filha. 
— Isso é uma loucura, exclamou o desembargador; esse rapaz (o escolhido) é bom coração, tem carreira, mas a carreira está no princípio, e demais... creio que é um pouco leviano. 
Serafina soube deste juízo do pai e chorou muito; mas nem o pai soube das lágrimas nem que soubesse mudaria de intenção. Um homem grave, quando resolve uma coisa, não deve expor-se ao ridículo, resolvendo outra unicamente levado de algumas lágrimas de mulher. Demais, a tenacidade é prova de caráter; o desembargador era e queria ser homem austero. Conclusão; a moça chorou à toa, e só violando as leis da obediência, poderia realizar os desejos do seu coração. 
Que fez então ela? Recorreu ao tempo. 
— Quando meu pai vir que eu sou constante, pensou Serafina, há de consentir no que pede o coração. 
E dizendo isto, entrou a lembrar-se das amigas a quem acontecera o mesmo e que à força de paciência e tenacidade domaram os pais. O exemplo alentou-a; sua resolução era definitiva. 
Outra esperança tinha a filha do  desembargador; era que o filho do comendador se casasse, o que não era impossível nem improvável. 
Nesse caso, cumpria-lhe ser com João Aguiar extremamente reservada a fim de que ele não viesse a conceber esperanças a seu respeito, o que tornaria muito precária a situação e daria triunfo ao pai. Ignorava a boa moça que João Aguiar fazia a mesma reflexão, e pelo mesmo motivo se mostrava frio com ela. Um dia, andando as duas famílias na chácara da casa do comendador, em Andaraí, aconteceu encontrarem-se os dois numa alameda, quando justamente não passava ninguém. Ambos mostraram-se incomodados com aquele encontro e de boa vontade teriam recuado; mas não era natural nem bonito. 
João Aguiar resolveu cumprimentá-la apenas e ir adiante, como quem levava o pensamento preocupado. Parece que isto foi fingido demais, porque no melhor do papel, João Aguiar tropeça num pedaço de cana que se achava no chão e cai.  A moça deu dois passos para ele, que apressadamente se levantou: 
— Machucou-se? Perguntou ela. 
— Não, D. Serafina, não me machuquei, disse ele, limpando com o lenço os joelhos e as mãos. 
— Papai está cansado de ralhar com o feitor; mas é o mesmo que nada. 
João Aguiar apanhou o pedaço de cana e atirou-o para uma moita de bambus. Durante esse tempo vinha-se aproximando um moço, visita da casa, e Serafina pareceu um tanto confusa com a presença dele, não porque ele viesse mas por achá-la a conversar com o bacharel. A leitora, que é perspicaz, adivinhou já que é o namorado de Serafina; e João Aguiar, que não é menos perspicaz que a leitora,percebeu a coisa do mesmo modo. 
— Ainda bem, disse ele consigo. 
E cumprimentando a moça e o rapaz ia seguindo pela alameda fora quando Serafina amavelmente o chamou. 
— Não nos acompanha? Disse ela. 
— Com muito gosto, balbuciou o bacharel. 
Serafina fez um sinal ao namorado para que ele se tranqüilizasse, e os três seguiram a conversar de coisas que não interessam à nossa história. 
Não; há uma que interessa e não posso omitir.Tavares, o namorado da filha do desembargador, não compreendeu que ela, chamando o filho do comendador a seguir caminho com eles, tinha por fim evitar que o pai ou a mãe a encontrasse só com o namorado, o que agravaria singularmente a situação. Há namorados a quem é preciso dizer tudo; Tavares era um deles. Inteligente e atilado em todas as outras coisas, era neste particular uma verdadeira toupeira. 
Por esse motivo, apenas ouviu o convite da moça, a cara, que já anunciava mau tempo, passou a anunciar temporal  desfeito, o que também não escapou ao bacharel. 
— Sabe que o Dr. Aguiar levou agora uma queda? Disse Serafina olhando para Tavares. 
— Ah! 
— Não desastrosa, disse o bacharel, isto é, não me fez mal nenhum; mas...
Ridícula. 
— Ah! Protestou a moça. 
— Uma queda é sempre ridícula, tornou João Aguiar em tom axiomático; e podem já imaginar o que seria do meu futuro, se eu fosse... 
— O quê? Perguntou Serafina. 
— Seu namorado. 
— Que idéia! Exclamou Serafina. 
— Que dúvida pode haver nisso? Perguntou Tavares com um sorriso irônico. 
Serafina estremeceu e baixou os olhos. 
João Aguiar respondeu rindo: 
— A coisa era possível, mas deplorável. 
Serafina lançou um olhar de repreensão ao seu namorado e voltou-se rindo para o bacharel. 
— Não diz isso por desdém, acho eu? 
— Oh! Por quem é! Digo isto por que... 
— Aí vem Cecília! Exclamou a irmã mais moça de Serafina, aparecendo no fim da alameda.  Serafina que estava a olhar para o filho do comendador viu-o estremecer e sorriu-se. O bacharel olhou para o lado de onde logo apareceu a dama dos seus pensamentos. A filha do desembargador inclinou-se para o ouvido de Tavares e murmurou: 
— Ele diz isto... Por causa daquilo. 
Aquilo era a Cecília que chegava, não tão formosa quanto queria João Aguiar, em tão pouco como parecia ao comendador.   
Aquele encontro casual na alameda, aquela queda, aquela vinda de Tavares e de Cecília tão a propósito, tudo melhorou a situação e desafogou a alma dos dois jovens destinados por seus pais a um casamento que lhes parecia odioso. 
De inimigos que deviam ser os dois condenados ao casamento passaram a ser naturalmente aliados. Esta aliança veio devagar, porque, apesar de tudo, ainda se passaram algumas semanas sem que  nenhum deles comunicasse ao outro a situação em que se achava.  O bacharel foi o primeiro que falou, e não ficou pouco pasmado ao saber que o desembargador nutria a respeito da filha igual plano ao de seu pai. Haveria acordo dos dois pais? foi a primeira pergunta que ambos fizeram consigo mesmo; mas houvesse ou não, o perigo para eles não diminuía nem aumentava. 
— Oh! sem dúvida, dizia João Aguiar, sem dúvida que eu seria muito feliz se os desejos de nossos pais correspondessem aos de nossos corações; mas há um abismo entre nós e a união seria... 
— Uma desgraça, concluía afoitamente a moça. Pela minha parte, confio no tempo; confio, sobretudo em mim; ninguém leva uma moça à força para a igreja e quando tal coisa se fizesse ninguém lhe podia arrancar dos lábios uma palavra por outra. 
— Todavia, nada impede que  à liga de nossos pais, disse João Aguiar,
opuséssemos nós uma liga... Nós quatro. A moça abanou a cabeça. 
— Para quê? Disse ela. 
— Mas... 
— A verdadeira liga é a vontade. Sente-se com força de ceder? Então é que não ama... 
— Oh! Amo como se pode amar! 
— Ah!... 
— A senhora é bela; mas Cecília também o é, e o que eu vejo nela não é a beleza, quero dizer as graças físicas, é a alma incomparável que Deus lhe deu! 
— Amam-se há muito? 
— Há sete meses. 
— Admira que ela nunca me dissesse nada. 
— Talvez receio... 
— De quê? 
— De revelar o segredo do seu coração... Bem sei que não há crime nisto, todavia pode ser que por um sentimento de discrição exagerada. 
— Tem razão, disse Serafina depois de alguns instantes; também eu nada lhe disse a meu respeito. Demais, entre nós não há grande intimidade. 
— Mas deve haver, há de haver, disse o filho do comendador. Vê-se que
nasceram para ser amigas; ambas tão igualmente boas e belas. Cecília é um  anjo...
__ Se soubesse o que me disse quando eu lhe contei a proposta de meu pai! 
— Que disse? 
— Estendeu-me a mão apenas; foi tudo quanto me disse; mas esse gesto era tão eloqüente! Eu traduzi-o por uma expressão de confiança. 
— Foi mais feliz do que eu? 
— Ah! 
— Mas não falemos nisto. O essencial é que tanto  eu como o senhor tenhamos feito uma boa escolha. O céu há de proteger-nos; estou certa disso. 
A conversa continuou assim por este modo singelo e franco. Os dois pais, que ignoravam absolutamente o objeto da conversa deles, imaginavam que a natureza os ajudava no plano do casamento e, longe de impedir, lhes facilitavam as ocasiões. 
Graças a este equívoco, os dois podiam repetir essas doces práticas em que  cada um ouvia o seu próprio coração e falava do objeto escolhido por ele. Não era um diálogo, eram dois monólogos, algumas vezes interrompidos, mas sempre longos e cheios de animação. 
Com o tempo vieram eles a fazer-se confidentes mais íntimos; esperanças, arrufos, ciúmes, todas as alternativas de um namoro, comunicados um ao outro; um ao outro se consolavam e se aconselhavam em casos em que eram necessários consolação e conselho. 
Um dia o comendador disse ao filho que era conhecido o namoro dele com a filha do desembargador, e que o casamento podia ser feito naquele ano. João Aguiar caiu das nuvens. Compreendeu, porém, que a aparência enganava ao pai, e o mesmo podia acontecer às pessoas estranhas. 
— Mas nada há, meu pai. 
— Nada? 
— Juro-lhe que... 
— Retira-te e lembra-te do que te disse... 
— Mas
O comendador havia já voltado as costas. João Aguiar ficou só a braços com a nova dificuldade. Para ele, a necessidade de uma confidente era já invencível. E onde acharia melhor que a  filha do desembargador? Era  idêntica a situação de ambos, iguais os interesses; além disso, havia em Serafina uma soma de sensibilidade, uma reflexão, uma prudência, uma confiança, como ele não encontraria em nenhuma outra pessoa. Ainda quando  a outra pessoa pudesse dizer-lhe as mesmas coisas que a filha do desembargador, não lhas diria com a mesma graça, e a mesma doçura; um não sei o que o levava a lastimar não poder fazê-la feliz. 
— Meu pai, tem razão, dizia ele às vezes consigo; se eu não amasse a outra, devia amar a esta, que é certamente comparável a Cecília. Mas é impossível; meu coração está preso a outros laços... 
A situação, entretanto, complicava-se, toda a família de João Aguiar dizia-lhe que a sua verdadeira e melhor noiva era a filha do desembargador. Para acabar com todas essas insinuações, e seguir os impulsos do seu coração, teve o bacharel idéia de raptar Cecília, idéia extravagante e só filha do desespero, visto que o pai e a mãe da namorada nenhum obstáculo punham  ao casamento deles. Ele mesmo reconheceu que o recurso era um despropósito. Ainda assim disse-o a Serafina, que amigavelmente o repreendeu: 
— Que idéia foi essa! Exclamou a moça, além de desnecessário, não era...
Não era decorosa. Olhe, se fizesse isso nunca mais devia falar-me... 
— Não me perdoaria? 
— Nunca! 
— Entretanto, a minha posição é dura e triste. 
— Não o é menos a minha. 
— Ser amado, poder ser feliz tranqüilamente feliz para todos os dias da minha vida... 
— Oh! Isso! 
— Não crê? 
— Quisera crer. Mas está-me a parecer que a felicidade que sonhamos quase nunca sai à medida dos nossos desejos, e que mais vale uma quimera que uma realidade. 
— Adivinho, disse João Aguiar. 
— Adivinha o quê? 
— Algum arrufo. 
— Oh! Não! Nunca estivemos melhor; nunca andamos mais tranqüilos do que agora. 
— Mas... 
— Mas não permite que às vezes a dúvida entre no coração? Não é ele do mesmo barro que os outros? 
João Aguiar refletiu alguns instantes. 
— Talvez tenha razão, disse ele enfim, a realidade não será sempre tal qual a sonhamos. Mas isto mesmo é uma harmonia na vida, é uma grande perfeição do homem. Se víssemos logo a realidade como ela há de ser quem daria um passo para ser feliz.
— Isso é verdade! Exclamou a moça e deixou-se ficar pensativa enquanto o bacharel lhe contemplava a admirável cabeça e a graciosa maneira com que ela trazia os cabelos penteados. 
A leitora há de desconfiar muita coisa às teorias dos dois confidentes relativamente à felicidade. Pela minha parte, posso afiançar que João Aguiar não pensava uma só palavra que disse; não o pensava antes, quero eu dizer; ela porém tinha o secreto poder de lhe influir as suas idéias e sentimentos. Não poucas vezes dizia ele que se ela fosse fada podia dispensar a vara de condão; bastava falar. 
Um dia, Serafina recebeu uma carta de Tavares dizendo-lhe que não voltaria mais à casa de seu pai, por este lhe haver mostrado má cara nas últimas vezes que ele lá estivera. Má cara é exageração de Tavares, cuja desconfiança era extrema e às vezes pueril; é certo que o desembargador não gostava dele, depois que soube das intenções com que ali ia, e é possível, é até certo que o  seu modo afetuoso para com ele sofreu alguma diminuição. A fantasia de Tavares é que fez daquilo má cara.  Eu aposto que o leitor, em caso igual, redobrava de atenções com o pai, a ver se lhe reconquistava as boas graças, e entretanto ia gozando a fortuna de ver e contemplar a dona dos seus pensamentos. Tavares não fez assim; tratou logo de romper as suas relações. 
Serafina sentiu sinceramente esta  resolução do namorado. Escreveu-lhe dizendo que refletisse bem e voltasse atrás. Mas o namorado era homem teimoso; meteu os pés à parede, e não voltou. 
Jurar-lhe amor isso fez ele, e não deixava de lhe escrever todos os dias, cartas muito longas, muito repassadas de sentimento e de esperanças.
João Aguiar soube do que se passara e procurou por sua vez dissuadi-lo da funesta resolução. 
Tudo foi baldado. 
— A desconfiança é o único defeito  dele, dizia Serafina ao filho do comendador; mas é grande. 
— É um defeito bom e mau, observou João Aguiar. 
— Não é sempre mau. 
— Mas como não há criatura perfeita, é justo relevar-lhe esse único defeito. 
— Oh! De certo; contudo... 
— Contudo? 
— Preferia que o defeito fosse outro. 
— Outro qual? 
— Outro qualquer. A desconfiança é uma triste companheira; arreda toda a felicidade. 
— Eu a esse respeito, não tenho motivo de queixa... Cecília tem a virtude oposta num grau que me parece excessivo. Há nela um quê de simplória... 
— Oh! 
Aquele oh de Serafina foi como que um protesto e repreensão, mas acompanhado de um sorriso, não digo aprovador, mas benévolo. Defendia a moça ausente, mas talvez achasse que João Aguiar tinha razão. 
Dois dias depois adoeceu levemente o bacharel. A família do desembargador foi visitá-lo. Serafina escrevia-lhe todos os dias. Cecília, é inútil dizê-lo, escrevia-lhe também. Mas havia uma diferença: Serafina escrevia melhor; havia mais sensibilidade na sua linguagem. Pelo menos, as cartas dela foram relidas mais vezes que as de Cecília. 
Quando ele se levantou da cama, estava bom fisicamente, mas recebeu um golpe na alma. Cecília ia para a roça durante dois meses; eram manias do pai.  O comendador estimou este incidente, supondo que de uma vez para sempre o filho a esqueceria. O bacharel, entretanto, sentiu muito a separação. A separação efetuou-se dai a cinco dias. Cecília e João Aguiar escreveram um ao outro grandes protestos de amor. 
— Dois meses! Dizia o bacharel da última vez que lhe falara. Dois meses é a eternidade... 
— Sim, mas havendo constância... 
— Oh! Essa! 
— Essa havemos de tê-la ambos. Não te esqueças de mim, sim? 
— Juro. 
— Falarás de mim muitas vezes com Serafina? 
— Todos os dias. 
Cecília partiu. 
— Está muito triste? Disse a filha do desembargador logo que nessa mesma tarde falou ao bacharel. 
— Naturalmente. 
— São apenas dois meses. 
— Fáceis de suportar. 
— Fáceis? 
— Sim, conversando com a senhora, que sabe tudo, e fala destas coisas de coração como senhora de espírito que é. 
— Sou um eco das suas palavras. 
— Quem dera que assim fosse! Eu poderia então ter vaidade de mim. 
João Aguiar disse estas palavras sem tirar os olhos da mão de Serafina, que mui graciosamente brincava com os cabelos. 
A mão de Serafina era realmente uma bela mão; nunca, porém, lhe pareceu mais bela do que naquele dia, nem ela a movera nunca com tamanha graça. 
Nessa noite João Aguiar sonhou com a mão da filha de desembargador. Que lhe havia de pintar a fantasia? Imaginou estar no alto das nuvens, a olhar pasmado o céu azul, de onde viu repentinamente sair uma mão alva e delicada, a mão de Serafina, que se estendia para ele, que lhe acenava, que o chamava para o céu.  Riu-se João Aguiar deste singular sonho e foi contá-lo no dia seguinte à proprietária da mão. Também ela riu do  sonho; mas tanto ele como ela pareciam estar convencidos lá no seu interior  que a mão era efetivamente angélica e era natural vê-la em sonhos. 
Quando ele se despediu: 
— Não vá sonhar outra vez com ela, disse a moça estendendo a mão ao bacharel. 
— Não desejo outra coisa. 
Não sonhou outra vez com a mão, mas pensou muito nela e dormiu tarde.
No dia seguinte para se castigar desta preocupação, escreveu uma longa carta a Cecília falando muito de seu amor e dos projetos de futuro. Cecília recebeu a carta cheia de contentamento, porque muito tempo havia já que ele não escrevia carta tão longa. A resposta dela foi ainda mais comprida. 
Um período da carta convém ser transcrito aqui:  Dizia assim: 
Se eu fosse ciumenta... Se eu fosse desconfiada... Havia de te dizer agora muito duras coisas. Mas não digo, descansa; amo-te e sei que me amas. Mas por que havia eu de dizer duras coisas? Porque nada menos de catorze vezes falas no nome de Serafina. Catorze vezes! Mas são catorze vezes em catorze páginas, que são todas minhas. João Aguiar não se lembrava de haver escrito tanta vez o nome da filha do desembargador; lembrava-se, porém,  de haver pensado muito nela enquanto escrevia a carta. Felizmente nada mau resultara, e o jovem namorado achou que ela tinha razão na queixa. 
Nem por isso deixou de mostrar o trecho acusador à namorada do Tavares, que sorriu e agradeceu a confiança. Mas foi um agradecimento com a voz trêmula e um sorriso de íntima satisfação.  Parece que as catorze páginas deviam servir para longo tempo, porque a seguinte carta foi apenas de duas e meia.  A moça queixou-se, mas com brandura, e concluiu pedindo-lhe que fosse vê-la à roça, ao menos por dois dias, visto que o pai resolvera lá ficar mais quatro meses, além do prazo marcado para a volta. 
Era difícil ao filho do comendador ir lá ter sem oposição do pai. Imaginou porém um meio bom; inventou um cliente e um processo, ambos os quais o digno comendador engoliu, cheio de satisfação. 
João Aguiar partiu para a roça.  Ficou la dois dias apenas; os dois dias correm nas delícias que o leitor pode imaginar, mas com uma sombra, uma coisa inexplicável. João Aguiar, ou porque aborrecesse a roça ou porque amasse demais a cidade, sentia-se um pouco tolhido ou não sei que seja. No fim de dois dias  desejava ver-se outra vez no bulício da corte. Felizmente, Cecília procurava compensar-lhe os tédios do lugar, mas parece que era excessiva nas mostras de amor que lhe dava, pois o digno bacharel dava sinais de impaciência. 
— Serafina tem mais comedimento, dizia ele. 
No quarto dia escreveu uma carta à filha do desembargador, que lhe respondeu com outra, e se eu disser à leitora que tanto um como outro beijaram as cartas recebidas, a leitora verá que a história se aproxima do fim e que a catástrofe está próxima.  Catástrofe, na verdade, e terrível foi a descoberta que tanto o bacharel como a filha do desembargador fizeram de que se amavam e já de longos dias. Foi principalmente a ausência que lhes confirmou a descoberta. Os dois confidentes aceitaram esta novidade um pouco perplexos, mas muito contentes. 
A alegria era travada de  remorso. Havia dois embaçados, a quem eles fizeram grandes protestos e juramentos repetidos. João Aguiar não resistiu ao novo impulso do coração. A imagem da moça, sempre presente, fazia-lhe tudo cor-de-rosa. 
Serafina, porém, resistiu; a dor que ia causar no ânimo de Tavares deu-lhe  forças para calar o seu próprio coração. 
Em conseqüência disto, começou a evitar toda a ocasião de encontro com o jovem bacharel. Isto e lançar lenha ao fogo era a mesma coisa. João Aguiar sentiu um obstáculo com que não contava, o amor cresceu-lhe e apoderou-se dele. 
Não contava com o tempo e o coração da moça.  
A resistência de Serafina durou o que duram as resistências de quem ama.
Serafina amava; no fim de quinze dias abateu as armas. Tavares e Cecília estavam vencidos. 
Eu desisto de dizer ao leitor o abalo produzido naquelas duas almas pela ingratidão e  perfídia dos dois felizes namorados. Tavares enfureceu-se e Cecília definhou longo tempo; afinal Cecília casou e Tavares está diretor de companhia.
Não há dor eterna. 
— Bem dizia eu! Exclamou o comendador quando o filho lhe impetrou licença para ir pedir a mão de Serafina.  Bem dizia eu que vocês deviam casar!
Custou muito! 
— Alguma coisa. 
— Mas agora? 
— Definitivo. 
Casaram-se há alguns anos aqueles dois confidentes. Recusaram fazer à força aquilo que o coração lhes indicou depois. 
Há de ser duradouro o casamento.”
FONTE FOTO: http://veja.abril.com.br/noticia/variedade/machado-assis-segue-atual-348476.shtml